Semana Santa: a semana da vitória da vida sobre a morte

É a semana da nossa reconciliação com Deus. É a semana da vitória da vida sobre a morte

Iniciamos hoje a Semana Santa. Semana na qual celebramos a centralidade da nossa fé, que tem início na entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, ou seja, a subida de Jesus Cristo ao Monte Calvário, a Morte e a Ressurreição de Jesus Cristo para a nossa salvação; para nos resgatar das mãos do demônio e nos transferir para o mundo da luz, para a liberdade dos filhos de Deus. Jesus morreu na cruz para reconciliar o homem com o Pai. É a semana da nossa reconciliação com o Senhor, é a semana da vitória da vida sobre a morte, do pecado sobre a graça.

Quando os fiéis são batizados, aplica-se a cada um deles os efeitos redentores da Morte e Ressurreição de Cristo. Por isso, o cristão católico convicto celebra com alegria cada função litúrgica da Semana Santa, que começa hoje e termina na celebração do Tríduo Pascal e da Páscoa.

Assim recomenda a Santa Mãe Igreja que todos os seus filhos se confessem, para que, correndo com Cristo do pecado, possam com Ele ressuscitar, na madrugada do Domingo da Páscoa para a vida eterna.

O tempo da Quaresma se prolonga até a Quinta-feira da Semana Santa. A Missa Vespertina da Ceia do Senhor é a grande introdução ao Santo Tríduo Pascal. E este [Tríduo Pascal] tem início na Sexta-feira da Paixão, prossegue com o Sábado Santo e chega ao ponto mais alto na Vigília Pascal, terminando com as vésperas do Domingo da Ressurreição.

“Ai da alma se lhe falta Cristo! Que a cultive com diligência, para que possa germinar os bons frutos do Espírito! Deserta, coberta de espinhos e abrolhos, terminará por encontrar, em vez de frutos, a queimada. Ai da alma, se seu Senhor, o Cristo, nela não habitar! Abandonada, encher-se-á com o mau cheiro das paixões, virará moradia dos vícios”, diz São Macário.

Acolhendo o mistério redentor de Cristo e Sua Palavra, meditando os acontecimentos da nossa redenção, só poderemos crescer na alegria e na paz do Deus que nos ofertou a vida. Deixemos, pois, que o Espírito de Deus tome conta de nossa existência, para que sejamos conduzidos à eterna alegria da salvação e da ressurreição.

Acolhendo o mistério central da nossa fé, desejo boa Semana Santa para você e a toda a sua família.

Autor: Pe. Bantu Mendonça Katchipwi Sayla

A Queda de Lúcifer – Para mera meditação

A queda

No esplendoroso cenário do Reino Celestial, São Miguel Arcanjo, o guerreiro divino, emerge com uma presença imponente, irradiando uma luz dourada que banha todo o ambiente. Ele observa com serenidade enquanto Lúcifer, envolto em seus próprios pensamentos,tudo observa em nebuloso silêncio. Enquanto ao redor, a presença de Deus Onipotente Uno e Trino tudo resplandece, juntamente com todas as cortes celestes: os Arcanjos, os Anjos e as Hierarquias Angelicais.

Enquanto isso São Miguel faz sua reverência solene a Trindade Santa, pede a palavra e dirigindo-se frontalmente a Lúcifer Profere o dialago que se segue:

São Miguel Arcanjo: Com autoridade e  se dirige a Lúcifer: “Lúcifer, filho da aurora, por que permites que a sombra obscureça tua luz?”

Lúcifer:”São Miguel, por que devemos aceitar a subjugação quando podemos ser tão magníficos quanto nosso Criador?”

São Miguel Arcanjo: Lhe diz com serenidade: “A verdadeira grandeza reside na aceitação humilde da vontade divina. A rebeldia só leva à escuridão do desespero e à perdição total!”

Lúcifer:”Recuso-me a ser um mero servo. Eu almejo a igualdade com o Todo-Poderoso!”

São Miguel: Sussurrando: “Cuidado, Lúcifer, a soberba te cega e te levará à perdição total!”

Lúcifer: Ignorando o aviso: “Não me curvarei diante de um Criador que nos mantém na sombra da Sua grandeza!”

Enquanto os murmúrios se transformam em murmúrios de descontentamento, São Miguel observa com tristeza a crescente divisão entre os anjos.

São Miguel Arcanjo: Com pesar: “Lúcifer, vê onde teu orgulho te conduzirá. A escuridão que abraças é uma ilusão que te afastará da fonte de toda luz e vida.”

Lúcifer: Responde-lhe com desafio: “Prefiro reinar no inferno do que servir no céu!”

São Miguel Arcanjo: Responde com um suspiro resignado: “Se apesar de tudo assim o queres, que se cumpra a justiça divina sobre ti!”

Doravante serás chamado de Satanás que significa;

São Miguel testemunha a queda de Lúcifer:

Imediatamente, as trevas caem violentamente sobre Lúcifer, cuja imagem se transforma! Seu rosto e corpo tornam-se monstruosos e em forma de raio é lançado sobre a terra.

São Miguel Arcanjo: Profere então:

“Satanás, filho da própria perdição! Cumprirás doravante o destino que loucamente escolheste e eu, sob as ordens de Deus Todo-Poderoso, batalharei contra ti até o fim dos tempos. Bem dito seja o Altíssimo e Onipotente que assim o determinou!

Doravante serás chamado de Satanás que significa: Acusador; Filho da Perdição; Serás encarcerado perpetuamente num lugar chamado inferno, e todos àqueles que ao teu exemplo seguirem ou por ti forem, cooptados, gozarão do mesmo destino!

Amém! Amém!”

E assim se fez….

P.s O texto acima e por óbvio, uma criação fictícia!

Porém nosso intuito aqui, é o de levar o leitor a uma meditação católica do tema e dele fórmula uma oração!

São Miguel Arcanjo permanece como um guardião solene, enquanto a tragédia épica da rebelião celestial se desenrola, recordando a todos os seres celestiais e principalmente aos humanos,  a importância da humildade e da obediência à vontade divina.

Aqui exporemos a visão que São Leão XIII recebeu em êxtase:

São Leão XIII recebeu uma visão em êxtase que é conhecida como a Visão de Leão XIII. Segundo relatos, ele teve uma visão sobre a batalha espiritual entre Jesus Cristo e Satanás, na qual Satanás desafiava a Deus, afirmando que poderia destruir a Igreja. Nessa visão, Deus permitiu que Satanás tentasse seduzir a Igreja, e ele escolheu fazer isso através de influências internas, corrupção e divisão entre os fiéis. Essa visão levou São Leão XIII a compor a Oração a São Miguel Arcanjo, pedindo proteção contra as forças do mal.

Além desta parte, uma segunda que se segue:

O diálogo entre os dois costuma ser relatado da seguinte forma:

Satanás diz a Jesus: “Eu posso destruir a sua Igreja”.

Jesus responde: “Você pode? Então vá em frente e faça isso”.

Satanás: “Para fazer isso, preciso de mais tempo e mais poder”.

Jesus: “Quanto tempo? Que tipo de poder?”

Satanás: “De 75 a 100 anos, e um poder maior sobre aqueles que se entregam ao meu serviço”.

(A Fonte deste texto é o da ALETEIA: https://pt.aleteia.org/2021/06/20/a-visao-demoniaca-que-inspirou-a-composicao-da-oracao-de-sao-miguel-arcanjo/)

Oração de São Leão XIII contra as ciladas e embustes do Demônio:

“São Miguel Arcanjo, defendei-nos no combate, sede nosso refúgio contra as maldades e ciladas do demônio. Ordene-lhe Deus, instantemente o pedimos, e vós, príncipe da milícia celeste, pelo divino poder, precipitai no inferno a Satanás e aos outros espíritos malignos que andam pelo mundo para perder as almas. Amém.”

1 Pater

3 Ave Maria

1 Glória

1. Primeira Hierarquia:

   – Serafins

   – Querubins

   – Tronos

2. Segunda Hierarquia:

   – Dominações

   – Virtudes

   – Potestades

3. Terceira Hierarquia:

   – Principados

   – Arcanjos

   – Anjos

4. Quarta Hierarquia:

   – Arcanjos: São Miguel, São Gabriel, São Rafael, entre outros.

   – Anjos: Inumeráveis seres celestiais que servem e glorificam a Deus.

Que a harmonia e a ordem celestiais nos inspirem a seguir os desígnios divinos com humildade e devoção, confiantes na proteção e na intercessão dos santos e dos anjos. Amém.

Por que o acompanhamento espiritual é uma necessidade?

Vós sois o sal da terra. Ora, se o sal se tornar insosso, com que o salgaremos? Para nada mais serve, senão para ser lançado fora e pisado pelos homens.” (Mt 5, 13)

A motivação que deve fazer-nos desejar viver a graça do acompanhamento espiritual deve ser inspirada pela afirmação de Jesus: “Vós sois o sal da terra”.Trata-se de verificar que nunca percamos o sal e o sabor do nosso ser batismal, da nossa vocação, assim como da nossa identidade evangélica.

O sal previne a corrupção e dá sabor à comida. Ser sal da terra é lutar contra tudo o que degrada o homem, começando em si mesmo, irradiando suficientemente vida no Espírito para devolver o gosto pela vida, aos que o perderam.

Os tempos de acompanhamento espiritual são precisamente um “kairós providencial”, uma pausa vital para ler a ação de Deus em nossas vidas, por vezes complicadas. Hoje, mais do que em qualquer outra época, corremos o risco de não estar mais presentes a nós mesmos e, por isso, temos dificuldade em encontrar o sentido e a direção de nosso percurso de vida.

Por que a prática do acompanhamento espiritual é uma necessidade para o discípulo de Cristo? Porque ele procura, “com temor e tremor” (Fl 2, 12b), fazer a vontade de Deus em sua vida.

Diz-se que um dia, alguns irmãos foram à casa do Abba Antônio (trata-se de Sto. Antônio, um monge egípcio do século III) e disseram-lhe:

Abba, diz-nos uma palavra: ‘Como ser salvo?’. O ancião disse-lhes: ‘Ouçam a Escritura. Far-vos-á muito bem’. E eles responderam: ‘Mas nós queremos ouvir isso de ti, Pai’.”  (Sto. Antônio, 9)

Assim como, na confissão, o sacerdote pronuncia sobre nós as palavras de perdão, em nome e na pessoa do próprio Cristo, assim também no acompanhamento precisamos ouvir “de um outro” o conselho do Senhor.

É claro que devemos evocar ao nosso acompanhador a realidade da nossa vida diária, porque a vida espiritual se desenrola nesta realidade. O espiritual é enxertado na realidade humana de nossa vida encarnada.

O acompanhamento espiritual ajuda a reconhecer o Espírito de Deus em ação na realidade de nossa história e de nossas relações humanas

Ele nos ajuda a aprofundar a nossa relação com Deus, a reconhecer Cristo, a fim de modelar a nossa vida baseada, na Sua relação com o Pai e com os homens. Ele nos convida a nos aceitarmos como somos, sob o olhar amoroso de Deus, sem hipocrisia, nem fuga ou rejeição.

Finalmente, o acompanhamento espiritual é necessário para ajustar nossa missão como Igreja, partilhando honestamente com nosso acompanhador nossos modos de viver as relações humanas, bem como nossas reações em certas situações e com determinadas personalidades.

O Cardeal Lopez Trujillo, Presidente do Pontifício Conselho para a Família, escreveu em 1999 (Ano do Pai):

Há também um medo generalizado do exercício da responsabilidade paterna, do exercício da autoridade, da educação (…) Da mesma forma, o que se chama ‘síndrome de Peter Pan’ está se espalhando, o que evidencia o capricho daqueles que sempre querem permanecer crianças, sem amadurecer. Então o medo de educar torna-se uma espécie de conspiração: os pais que não sabem ser educadores, respondem inconscientemente a estes caprichos, com reflexos de autojustificação. 

Diferentes argumentos são apresentados: os pais dizem que não se sentem dispostos a violar a liberdade de seus filhos, a dirigir, a orientar e a corrigir. Eles acreditam erroneamente ou que os seus filhos já estão formados ou que sofrem de perturbações graves que constituem barreiras intransponíveis para dirigi-los. E não percebem que, ao não educá-los de forma responsável, estão colocando a educação de seus filhos em grande risco. Tornam-se pesonalidades que não amadurecem, que não crescem.”

Como preparar bem o seu acompanhamento espiritual:

a) Prepare seriamente o seu acompanhamento,através dos seus vários exames de consciência, anotando o que experimenta diariamente numa caderneta ou num caderno pessoal. Você pode assim anotar para apresentar ao seu acompanhador: os assuntos a serem discutidos que lhe trabalham internamente, as perguntas a serem feitas, as dificuldades encontradas…

b) Você deve ter a iniciativa de solicitar o próximo acompanhamento ao seu acompanhador. Isso não deve vir dele, porque ele precisa ver em você: a sua liberdade de escolha, a sua motivação e a sua decisão pessoal.

c) O momento do acompanhamento em si mesmo, começa sempre com a oração,para pôr as duas pessoas: acompanhador e acompanhado na presença do Senhor. Não se esqueça que é Deus o seu principal acompanhador. Confie-se em Suas mãos e sob Sua condução junto com seu acompanhador, para acolher o que o Senhor lhe disser (ou não) nesse momento.

Pessoalmente, tenho o hábito de rezar ao Espírito Santo para que Ele seja o Inspirador, o Condutor e o Conselheiro deste encontro.

d) Traga “material” para o acompanhamento, no que diz respeito à sua vida e à sua história.

São precisamente os pontos que você anotou anteriormente em seu caderno, sobre os quais você quer partilhar. A partir da sua vida cotidiana, e depois o que diz respeito à salvação de sua alma (e não pontos acessórios ou secundários). Não é necessário falar muito ou fornecer demasiada informação. Contudo, aquele que se apresenta nesse momento de acompanhamento, não deve chegar sem nenhum material para apresentar.

O simples fato de anotar um pensamento para contar o meu pai espiritual, mesmo antes de eu ter terminado de escrevê-lo, me fazia sentir um benefício e alívio, tão grandes que era essa a minha segurança e tranquilidade.” (Um Padre do Oriente)

e) Não devemos esquecer a oportunidade de agradecer, na presença do acompanhador, pelas graças e bênçãos recebidas de Deus.

Com efeito, o acompanhamento não é apenas um pedido de ajuda, senão a pessoa tornar-se-ia facilmente ingrata, mesmo na prática dos exercícios espirituais!

Quem é instruído na Palavra torne participante de toda a sorte de bens que aquele que o instruiu”. (Gl 6, 6)

S. João da Cruz aconselha neste sentido: “Tudo o que a alma receber, seja de que forma for, por meios sobrenaturais, deve dizer imediatamente ao seu mestre espiritual, de forma clara, sincera, plena e simplesmente”.

f) A espiritualidade monástica oriental enfatiza a “abertura do coração e dos pensamentos” ao seu acompanhador.

A manifestação de maus pensamentos (“logismoi”, do grego que significa “pensamentos tentadores”)  é importante poder ser depositada num acompanhamento, a fim de podermos então tomar as boas armas espirituais.

S. João Clímaco descreve cinco momentos no assalto e na tentação dos pensamentos: “Os padres dotados de discernimento diferenciam vários movimentos: a tentação, a discussão, o consentimento, o cativeiro e o que chamamos de paixão da alma” (S. João Clímaco, na Escada Santa).

g) Em seguida, anote o que sairá do acompanhamento naquele momento: as moções recebidas, as referências bíblicas e os conselhos de seu acompanhador. E mesmo uma ou outra das suas reações. Estas notas permitirão então que você reveja e siga o seu caminho espiritual em unidade. Eles o ajudarão a lembrar aquele momento inspirado, em que Deus veio falar ao seu coração.

O monge é um “filólogo”, que significa: um amante da Palavra. Assim se dizia de Antônio do Deserto: “Ele estava tão atento que não deixou cair nenhuma das palavras das Escrituras no chão, mas as reteve todas, a ponto de que a memória fosse como livros para ele” (Vida de Antônio 3:7).

h) Entrega na oração e na escuta profunda,com fé e submissão, o conteúdo que o Senhor acaba de lhe dar e que lhe permitiu viver, através do seu acompanhador.

i) Não é necessário que o bom acompanhamento se prolongue. A sua qualidade não depende da quantidade! Os jovens monges do deserto esperavam “uma palavra”, às vezes apenas uma palavra “humildade!” do seu Staretz (literalmente traduzido do russo como “ancião”).

Entre vinte a quarenta minutos é tempo mais do que suficiente para um bom acompanhamento. Na nossa opinião, não mais de uma hora! É melhor ser mais curto e mais regular na fidelidade. Um acompanhamento demasiado longo acaba por pesar (para ambos!) e pode desencorajar a fidelidade e o ritmo das próximas sessões.

j) A pessoa acompanhada pode (deve) reagir livremente ao conselho do seu acompanhador.  O acompanhamento que mais me lembro é aquele em que me tornei claramente impaciente com o meu Pai espiritual. Não estava de acordo com a forma como Deus me fazia esperar!

S. João Clímaco chega ao ponto de dizer que prefere as pessoas que estão borbulhando de paixões, mesmo que sejam mal orientadas, às que nunca têm pathos, isto é, que não demostram nenhum sentimento e que não são entusiasmadas com nada  (cf. na Escada Santa, 5, 28).

Para os apaixonados, com efeito, a conversão os levará a orientar e disciplinar suas paixões para o Senhor e para a caridade de seus irmãos e irmãs, com a mesma força com que amaram cometer o pecado. Enquanto que entre as almas indiferentes, não há muita matéria para reformar nem converter!

Para Clímaco, é casto “aquele que bane o amor (carnal) pelo amor (ágape)” e “extingue o fogo material pelo fogo imaterial”.

E Máximo, o Confessor, declara neste sentido: “A alma é perfeita quando o seu poder de paixão está completamente voltado para Deus”  (Máximo, Séculos de caridade, III, 98).

k) Confiar à Virgem Maria ou a quem o Senhor mostrou e pediu pelo seu acompanhamento.

Ela tem um papel importante como Conselheira de Alma e Intercessora. Ela continua esse tempo de acompanhamento convosco, intercedendo pelas vossas necessidades segundo a vontade do Senhor. Ela sabe discernir (como em Caná), por um lado, como vossas reproduções: “já não têm vinho” (cf. Jo 2, 3) e, por outro, a vontade de Deus.

l) Certifique-se de que o seu acompanhamento seja regular. Eles serão uma bênção, especialmente a longo prazo.

m) Você também pode escrever ao seu acompanhador,especialmente se ele ou ela estiver viajando ou morando longe de você. O acompanhamento espiritual por carta tornou possível possuirmos um arquivo muito interessante. Por exemplo, as muitas Cartas, entre S. Francisco de Sales e Sta. Joana de Chantal (no século XVII).

O pacto perpétuo que o nosso acompanhamento espiritual nos devia fazer assinar deveria ser este: “Nunca esquecer a oferta de sal da minha Aliança com Deus!”.

Salgarás toda a oblação que ofereceres e não deixarás de pôr na tua oblação o sal da aliança de teu Deus; toda oferenda juntarás uma oferenda de sal a teu Deus.” (Lv 2, 13)

Em conclusão, observemos como o Papa Francisco recomenda o exercício tradicional do exame de consciência, um exercício que depois nos prepara para todas as nossas sessões de acompanhamento espiritual:

Proteger o seu coração, à noite, antes de terminar o seu dia, ficar sozinho, permanecer em silêncio diante de si mesmo e diante de Deus e fazer-se a pergunta: o que aconteceu hoje no meu coração? Que coisas atravessaram o meu coração? Alguém que eu não conheça entrou? A chave está no seu lugar? Aquele que não examina regularmente a sua consciência não pode ‘vigiar nem guardar bem o seu coração’. O exame de consciência é uma graça porque guardar o coração é guardar o Espírito Santo.

Os demônios, que são muito espertos, voltam sempre… Para que não entrem, é necessário que saibamos nos recolher, a fim de nos defendermos de tanta maldade e não nos deixarmos enganar por eles.” (Papa Francisco, Homilia em Sta. Marta, 10 de outubro de 2014)

OS TRÊS MOMENTOS DO CORRETO FAZER – Uma Reflexão Católica

Queremos ser amados. E para sermos amados, faremos, no núcleo onde se encontra nosso coração, tudo aquilo que possa gerar no outro simpatia por nós.

Se nosso foco estiver numa relação amorosa, tentaremos demonstrar que somos pessoas diferenciadas. Mostraremos o melhor de nós, seremos amáveis e até fingiremos e contaremos algumas inofensivas mentiras. Porque queremos que o outro VEJA que valemos à pena.

Se nosso foco estiver no campo profissional, tentaremos ser bem-sucedidos em grandes desafios. Demonstraremos empenho e esforço, competiremos com alguns colegas e até negligenciaremos a vida pessoal em prol da profissional. Porque queremos que nossos gestores e colegas de trabalho VEJAM que somos trabalhadores de excelência.

Se nosso foco estiver na experiência religiosa, daremos esmola, nos mostraremos como pessoas de oração e jejuaremos com disciplina. Demonstraremos que somos pessoas boas, dignas de sermos parte da Igreja, e às vezes até seremos criticados por querer aparecer. Porque queremos que o pároco, os ministros e os fiéis VEJAM que somos cristãos exemplares.

Jesus, observando nossa agitação e nossos esforços, compreende que estamos em processo, mas nos mostra que precisamos dar mergulhos mais profundos.

Num primeiro momento de nossa caminhada, medimos a nós mesmos a partir do olhar do outro. Na busca de seu amor e de sua aceitação, manejamos nossos gestos no compasso de suas expectativas, e embora tenham sido momentos cheios de autoilusões, essa experiência teve o seu valor. Afinal, fazendo coisas positivas, pudemos ver que é bom valer à pena, é bom empenhar esforços para fazer bem-feito e é bom lançar foco numa vida exemplar.

Mas precisamos avançar para um segundo momento, em que nos mediremos a partir de nós mesmos. Nossa alegria interior não estará condicionada aos nossos bons atos VISTOS pelos outros, mas pelo nosso próprio contentamento de um fazer bem-feito, movido pelo simples prazer com o bem. Já não importará aqui se alguém nos enxerga ou não, mas que NÓS tenhamos consciência e contentamento com o fazer correto que estivermos empreendendo.

Mas haverá um terceiro momento em que nos mediremos a partir de Deus. Nesse estágio, não importará se o outro viu ou gostou, ou mesmo se o que fizemos de bom foi motivado por nossas escolhas. Porque não serão mais nossas as escolhas. As perguntas, nesse estágio, serão: cumprimos o desejo de Deus? O Senhor está satisfeito com o tipo de esmola, oração e jejum que fizemos hoje? Pode até ser que nossa ação nem tenha sido a de nossa preferência, mas terá sido a que nos coube fazer ao identificar o desejo de Deus.

Quando chegarmos a esse momento, não haverá mais o outro e nem nós. Será tudo muito simples: tudo se resumirá à esmola que precisa ser feita, à oração como deve ser feita, e ao jejum como precisa ser feito. Como diz o apóstolo Pedro, tudo “de acordo com a vontade de Deus” (1 Pedro 4,2).

A doutrina dos oito vícios – Evagrio Pontico

A doutrina dos oito vícios é um capítulo interessante da psicologia monástica. Foi desenvolvida, sobretudo, por Evágrio Pôntico e Cassiano, mas aparece também em Clímaco, em Máximo Confessor e em outros. Nela se distinguem estes oito vícios: gula, luxúria, cobiça, tristeza, ira, acídia (preguiça), vaidade e orgulho.

A cada um destes oito vícios Evágrio atribui um demônio, que determina suas características. Nem todos provocam os mesmos pensamentos. Um provoca pensamentos de cobiça, outro pensamentos de orgulho. Nisto os demônios se distinguem também de acordo com sua espécie. Alguns são leves e atacam de repente – por exemplo, o demônio da luxúria. O demônio da acídia, pelo contrário, é pesado e pouco a pouco oprime a alma com sua força cada vez maior.

A estrutura dos oito vícios se dá de acordo com a tríplice divisão da alma segundo Platão. Os três primeiros vícios são atribuídos à parte dos desejos (epithymia), os três seguintes a parte excitável ou emocional (thymos), e os dois últimos a parte espiritual (nous).

Os três primeiros vícios – GULA, LUXÚRIA e COBIÇA – são instintos básicos fundamentais. Poderíamos atribuí-los a fase oral, anal e fálica no desenvolvimento da primeira infância. Estes instintos fazem parte da natureza humana, e não nos é possível simplesmente eliminá-los. Eles têm que ser integrados, é preciso que lhes seja imposta a reta medida.

Os três vícios seguintes – TRISTEZA, IRA e ACÍDIA – são estados negativos de ânimo, muito mais difíceis de ser superados. Estes estados não se deixam dominar como os instintos. O reto convívio com eles exige um equilíbrio da alma e uma maturidade interior, a que só podemos chegar quando nos ocupamos honestamente com os pensamentos e os estados de ânimo, e quando “nos abrimos” sem reservas para Deus.

Mais difícil ainda é combater os dois últimos vícios – VAIDADE e ORGULHO -, porque o espírito é o mais difícil de ser domado. Aqui é onde com mais facilidade os demônios podem enganar alguém.

A respeito dos oito vícios Evágrio fala de diferentes maneiras. Ele pode falar de impulsos e estados de ânimo, ou de pensamentos de cobiça ou de ira, ou então falar do demônio da cobiça, do demônio da ira. Ele, por conseguinte, personifica o vício. É como se fosse um interlocutor autônomo, um demônio que tenta alguém e que procura impeli-lo para um instinto, para uma emoção ou para uma cegueira espiritual. E cada um dos oito demônios possui sua técnica própria. O fato de identificar os demônios com os oito vícios mostra mais uma vez que na demonologia de Evágrio não se trata tanto de fenômenos extraordinários, como possessão, mas sim do elemento tenebroso e mau que cada pessoa experimenta em si, da luta contra as falsas atitudes interiores que procuram se estabelecer em nós, desta maneira criando obstáculos a nossa abertura para Deus. Evágrio descreve um por um os oito demônios que se encontram por trás dos diversos vícios.

I. O DEMÔNIO DA GULA

O demônio da gula rapidamente sugere ao monge o fracasso de sua ascese. Coloca-lhe diante dos olhos o estômago, o fígado, o baço, a hidropisia, uma doença prolongada, a falta do necessário, a falta de um médico. Muitas vezes leva-o a pensar também em determinados irmãos que foram vítimas dessas doenças. Às vezes ainda impele esses doentes a dirigirem-se aos ascetas e falarem-lhes de seu destino, pretextando que vieram a se tornar assim por causa da ascese (P7).

O demônio da gula, aqui, nunca instiga para comer em excesso. Ele apenas apresenta motivos que aparentam ser válidos e razoáveis contra o jejum. O demônio é por demais engenhoso para impelir alguém a um vício tão primitivo quanto o da gula. Seu método é a racionalização. Motivos razoáveis escondem as necessidades e desejos que se encontram por trás de tudo isto. Assim o demônio esconde-se atrás da razão para não precisar apresentar-se abertamente ao monge como pernicioso e mau. Ao que tudo indica, Evágrio percebeu este mecanismo da racionalização.

II. O DEMÔNIO DA LUXÚRIA

O demônio da luxúria força a desejar outros corpos. Ele ataca cruelmente os que praticam a continência, para que a abandonem, já que não leva a nada. Enlameia a alma e a seduz a ações vergonhosas. Fá-la pronunciar certas palavras e tornar a ouvi-las, como se o objeto estivesse visível e presente (P8).

O demônio da luxúria trabalha, sobretudo, através da fantasia, onde ele enche de imagens, de pensamentos, e desta maneira segue obscurecendo a razão. Ataca o monge de repente, quando ele menos espera, e imediatamente desperta nele uma paixão violenta (cf. P51). Este demônio costuma visitar os monges, sobretudo, à noite. Às vezes Evágrio diz que o demônio da luxúria entra diretamente no corpo e o incendeia (cf. Anti II, 45).

III. O DEMÔNIO DA COBIÇA

A cobiça lembra idade avançada, incapacidade das mãos para trabalhar, a vinda dos tempos de necessidade e de doença, o amargor da pobreza e a vergonha que significa ter que esperar dos outros o necessário (P9).

Também aqui o demônio não aborda diretamente o desejo, e sim apresenta toda sorte de razões que falam contra a pobreza e a generosidade. Não é o instinto que é estimulado, mas sim as razões para refreá-lo que são negadas, pintando-se os perigos que daí podem resultar. 

Os pensamentos insuflados pelo demônio da cobiça produzem medo e timidez, privam a pessoa do impulso interior para refrear o instinto e dirigi-lo para caminhos ordenados. Uma vez que não enxerga nenhuma motivação para se esforçar e para impor limitações, a pessoa – sem perceber – volta-se para o vício da cobiça. Deixa-se dominar pelo demônio da cobiça, porque na própria mente são vistos como maus todos os motivos para lutar contra o instinto. Aquele que já conviveu com viciados em drogas e com os argumentos que eles apresentam, sente-se confirmado pelas observações de Evágrio. Também aqui o que é questionado, com motivos aparentemente razoáveis, são todos os motivos para nos impormos restrições. Mas na realidade o que está por trás de todos estes motivos é a infantil necessidade de possuir sempre mais. Por não haver aprendido, quando criança, a renunciar e a adaptar-se à realidade, a pessoa é agora dominada pelo instinto, ou, como diz Evágrio, posta em xeque pelo demônio da cobiça. Segundo Freud, para nos adaptarmos à realidade não se pode dispensar uma certa renúncia ao instinto.

IV. O DEMÔNIO DA TRISTEZA

A tristeza surge as vezes por frustração dos desejos, outras vezes ela é uma consequência da ira. Quando nasce da frustração dos desejos, acontece assim: Primeiramente surgem pensamentos que fazem a pessoa lembrar-se de casa, dos pais e da vida passada. E quando veem que a alma, em vez de resistir a estes pensamentos, as acolhe e se alegra interiormente com o prazer, então eles tomam posse da alma e mergulham-na na tristeza porque já não se tem mais o que se tinha antes, nem se pode ter por causa da vida presente. E quanto mais ela se alegrou com os pensamentos de antigamente, tanto mais se desencoraja e sente-se oprimida pelos que vem depois (P10).

A causa última da tristeza é para Evágrio um apego exagerado ao mundo: Quem ama o mundo há de experimentar muita tristeza; mas quem despreza as coisas deste mundo há de encontrar alegria em tudo (Geister: PG 79, 115).

Quando alguém deseja muita coisa da vida, facilmente ele fica decepcionado e cai na tristeza. Esta oprime o coração do homem, pressiona-o, ao passo que a alegria o dilata (diacheo e systello). Outra característica da tristeza é o apego ao passado. No passado tudo era melhor e mais bonito. O olhar para o passado torna a pessoa cega para o presente. Ela já não se abre mais para a realidade, mas antes refugia-se nas aparências transfiguradas do passado. E logo que é obrigada a confrontar-se com o presente, a pessoa se enterra em sua tristeza, de onde não se deixa mais retirar por coisa alguma.

A tristeza enfraquece a razão contemplativa. Nenhum raio de sol penetra nas profundezas da água, e a visão da luz já não clareia o coração invadido pelas sombras. O nascer do sol é uma alegria para o homem, mas mesmo com isto a alma perturbada experimenta sentimentos desagradáveis (PG 79, 1157).

V. O DEMÔNIO DA IRA

Estreitamente ligada com a tristeza está a ira. Cassiano coloca a ira antes da tristeza, e mesmo Evágrio, em seu escrito sobre os oito espíritos do mal (PG 79, 1150ss), trata da ira antes da tristeza. Pois por vezes a tristeza nasce da ira, que Evágrio descreve da seguinte maneira:

A ira é uma paixão muito ardente. Dizemos que é como uma fervura da parte emocional da alma contra quem nos fez uma injustiça ou quem nos parece haver feito uma injustiça. Ela azeda a alma o dia inteiro, mas, sobretudo, arrasta consigo a razão durante a oração, ao manter diante dos olhos a face do ofensor. Quando perdura e se transforma em ressentimento, provoca confusão à noite, desmaio e palidez do corpo e ataques de feras selvagens. Estes quatro sinais que se seguem ao ressentimento são quase sempre acompanhados de numerosos outros pensamentos (P11).

A ira obscurece o espírito do homem, rouba-lhe a clareza. Os pensamentos do homem irado são brotos de víboras venenosas e devoram o coração que os faz nascer (PG 79, 1156).

As emoções violentas arrastam consigo o homem, impedindo-o de pensar com clareza. Seu efeito sobre a alma é tão nefasto assim porque através delas o inconsciente negativo penetra na consciência, com todas as imagens que provocam o medo e que passam a dominá-lo. O homem fica de tal forma à mercê de seus afetos que se deixa conduzir por eles, e, sobretudo, deixa-se levar à vingança. Ira clama por vingança. Quando a vingança não é possível, a ira se transforma em ressentimento, um estado de ânimo de permanente e raivosa insatisfação, mas também em tristeza. 

Quando não resiste ao afeto da ira, o monge é na verdade devorado por ela, como diz Evágrio, ou, na linguagem de Jung: o eu perde a compostura, “quer dizer, não consegue mais defender sua existência contra o assalto dos fatores afetivos, uma situação que pode ser encontrada com frequência no início de uma esquizofrenia”.

VI. O DEMÔNIO DA ACÍDIA

O demônio da acídia, também chamado demônio do meio-dia, é o mais trabalhoso de todos. Ele ataca o monge pela quarta hora e o sitia até a oitava hora. Primeiro faz com que o sol se mova muito devagar, ou que não se mova de maneira nenhuma, e que o dia pareça ter 50 horas. Depois impele o monge a sempre olhar para a janela e a correr para fora da cela, para ver se o sol ainda está longe da nona hora, e olhar ao redor para ver se não vem chegando algum irmão. Além disso injeta uma aversão contra o lugar em que se vive e contra a própria forma de vida, contra o trabalho manual, e inocula a ideia de que a caridade desapareceu entre os irmãos e que não existe mais ninguém que possa trazer algum consolo. E se por estes dias alguém ocasionou-lhe uma ofensa, o demônio utiliza também isto para aumentar a aversão. Faz com que o monge anseie por outros lugares e onde possa encontrar mais facilmente o que precisa e onde possa encontrar uma vida menos trabalhosa e mais útil. E acrescenta que agradar ao Senhor não depende do lugar. Deus, diz ele, pode ser adorado em toda parte. A tudo isto acrescenta ainda a lembrança dos parentes e de sua vida passada, pintando-lhe como a vida é longa, e mantendo-lhe diante dos olhos as dificuldades da ascese. Mobiliza, como se diz, todas as suas baterias para que o monge deixe sua cela e se desvie de sua rota. Atrás deste demônio não segue diretamente nenhum outro: um estado de paz e de indizível alegria toma posse da alma após o combate (P12).

A acídia é o abatimento do corpo e do espírito, a moleza e frouxidão. Para os antigos monges, o demônio da acídia é o mais perigoso de todos. Ele vem acompanhado por quase todas as tentações e pensamentos. Enquanto os outros demônios não atingem senão uma parte da alma, o demônio do meio-dia ocupa a alma inteira (cf. P36). Ele sufoca a razão e rouba da alma todas as suas forças. A pessoa não tem mais gosto por coisa nenhuma.

Cassiano chama a acídia também de tédio ou temor do coração, opressão interior. A falta de vontade impele a pessoa ou a dormir ou a fugir da cela, a procurar agitação. Evágrio descreve com bastante humor o comportamento de uma pessoa acometida de acídia: O olho do preguiçoso se volta muitas vezes para a janela e seu espírito imagina as pessoas que vêm visitá-lo. Range a porta, e logo ele se levanta, ouve uma voz e olha curioso pela janela, de onde não se afasta, ouve uma voz e olha embasbacado para fora. Na leitura o preguiçoso boceja muitas vezes e sente-se poderosamente atraído pelo sono; desvia os olhos do livro e os esfrega, voltando-os para a parede. Depois olha de novo para o livro, lê algumas palavras, esforçando-se inutilmente por perceber o sentido das palavras. Conta as páginas do livro e examina a escrita. Censura a escrita e o feitio, e por fim fecha o livro e o coloca sob a cabeça para dormir. E dorme um sono leve, porque depois a fome desperta a sua alma, e ele a sacia (Geister: PG 79, 1160).

Gregório Magno menciona as consequências da acídia: desespero, desânimo, mau humor, azedume, indiferença, sonolência, tédio, fuga de si próprio, aborrecimento, curiosidade, dispersão no falar, agitação do espírito e do corpo, inconstância, pressa e vacilação. A acídia é a grande tentação dos eremitas. É uma questão de vida ou morte. Tudo é questionado, falta todo impulso interior, o coração parece gravemente enfermo, a alma confusa.

A alma adoece e sofre, mergulhada no amargor da acídia. Em tal excesso de sofrimento abandonam-na todas as forças. Sua capacidade de resistência fica prestes a abandonar o campo a um demônio tão poderoso. Ela perdeu a cabeça, comportando-se como criancinha que chora e se lamuria sem parar, como se não houvesse mais qualquer esperança nem consolo (Ant VI, 38).

Todo o organismo da alma fica abalado. O homem sente-se nos limites de sua condição humana. Recai num comportamento infantil, busca quem dele se compadeça.

André Louf considera a acídia a crise em que cai necessariamente aquele que elimina todas as distrações. A acídia é “uma espécie de vertigem diante do vácuo entre a alma e Deus, impotência de abrangê-lo ou, simplesmente, de suportá-lo”. Na acídia o monge chega às raias da loucura. “A ruína espiritual e a decadência psíquica o espreitam”. Mas aquele que atravessa esta crise, aquele que se mantém firme, ou que simplesmente a suporta, este experimenta uma profunda paz e alegria. “Um homem novo, mais harmoniosamente integrado, é o que sai desta provação”.

A acídia corresponde ao estado que M.L. v. Franz chama de “perda da alma”. “A perda da alma aparece como uma repentina falta de disposição, como um cansaço. A pessoa deixa de ter alegria na vida, sente-se vazia e inerte, para ela nada mais parece ter sentido”. Franz explica este estado pelo fato de uma grande parte da energia psíquica haver fluído para o inconsciente, e, por conseguinte, não se encontrar mais à disposição do eu. A energia foi sugada por um complexo inconsciente. Enquanto ira e tristeza são reações à não-satisfação dos três instintos básicos, na acídia os instintos são reprimidos. Para Evágrio o perigo da acídia consiste precisamente em que ela se esconde àquele a quem acomete. Sem que o homem perceba, os instintos desordenados assumem as rédeas, por vezes até mascarados de virtudes. A esta observação de Evágrio corresponde o que Franz constata em muitas depressões endógenas, a saber, que “no fundo de toda paralisação e estagnação da personalidade existe como que um desejo qualquer particularmente intenso (poder, amor, impulso de expansão, agressões, etc.), mas que o homem depressivo, por variados motivos, não ousa trazer à tona”. Na acídia os três instintos básicos atacam o homem a partir do inconsciente, como impulsos reprimidos, e que por isso já não podem ser claramente reconhecidos. E é precisamente o fato de não se ver o adversário contra quem se combate que torna a acídia tão perigosa. Os monges aconselham a perseverança, porque então há de surgir uma nova vida, há de chegar à paz e à alegria. Franz expressa isto, do ponto de vista psicológico, com estas palavras: “Quando por bastante tempo se reside neste estado, mais tarde quase sempre o complexo que havia sido ativado pela energia retirada retorna à esfera consciente: surge um intenso interesse pela vida, mas que agora quase sempre impele em uma direção diferente”.

VII. O DEMÔNIO DA VAIDADE

O pensamento da vaidade é um pensamento muito sutil, que com facilidade infiltra-se entre os virtuosos. Inspira-lhes o desejo de publicar suas lutas e de irem atrás da glória dos homens. Fá-los fantasiar que estão expulsando furiosos demônios, curando as mulheres, que multidões procuram tocar-lhes os mantos. Prediz-lhes que hão de tornarem-se sacerdotes, e já fazem o povo vir bater à sua porta em busca de conselho. E se por acaso eles não quiserem, hão de ser levados à força. E fá-los criar esperanças vãs, e entrega-os às tentações pelo demônio do orgulho ou da tristeza, que lhes inspira pensamentos contrários às suas esperanças. Às vezes entrega-os também ao demônio da luxúria, eles que pouco antes ainda apareciam como um santo e como um sacerdote digno de veneração (P13).

A vaidade não se encontra no mesmo plano dos outros vícios. Ela é por Cassiano atribuída à parte racional da alma. A vaidade surge quando os outros vícios parecem já ter sido ‘superados’. Mas ela neutraliza o esforço para vencer os vícios. E o demônio da vaidade é particularmente esperto, ele sempre se infiltra quando os outros demônios já parecem haver sido vencidos. Evágrio compara a vaidade com uma bolsa de dinheiro furada. A gente coloca nela o salário de seus combates. Mas ela não guarda coisa nenhuma. Sendo assim a vaidade neutraliza todos os esforços para alcançar a vitória. Faz com que o monge lute por uma motivação errada, não para se abrir a Deus mas sim para agradar aos homens. Mas com isto ele passa a orientar-se pelo exterior e perde a sinceridade de olhar para si próprio.

Mais de uma pessoa identificada com elevados ideais tem sucumbido à tentação da vaidade. Como o ideal conta com o apreço dos homens, através do esforço por alcançá-lo, ele se compromete a aumentar o sentimento de seu próprio valor. Na vaidade o que ocupa o primeiro plano é, em última análise, o próprio eu. Trata-se de glorificar o eu, e não de entregar-se a Deus.

VIII. O DEMÔNIO DO ORGULHO

O demônio do orgulho leva a alma a uma profundíssima queda. Convence-a a não reconhecer a ajuda de Deus, mas a acreditar que a causa de suas boas ações vem por ela mesma, e a olhar os irmãos de cima para baixo, como pessoas ignorantes e sem compreensão. Depois do orgulho vem a ira e a tristeza, e mais tarde, como último mal, a confusão do espírito, a loucura, e visões de uma legião de demônios nos ares (P14).

O orgulho não é apenas o último, mas também o mais perigoso dos vícios. O orgulhoso considera-se a si mesmo como Deus, e em última análise ele renega sua condição de homem. Isto o retira da realidade para um mundo de aparências em que ele incha-se cada vez mais, terminando na confusão do espírito. O orgulho é aquilo que C.G. Jung chama de inflação. A pessoa incha-se com o que contém seu inconsciente, e com isto ela perde cada vez mais o sentido da realidade. Por último passa a considerar-se como um grande reformador, um profeta ou um santo. Nega suas próprias sombras e sem perceber é arrastada pelo inconsciente. Segundo Jung, isto leva à perda do equilíbrio da alma, à dissolução da personalidade. Por conseguinte, é adequado falar-se do demônio quando nos referimos aos perigos do orgulho. Pois o orgulhoso, ao identificar-se com o arquétipo do inconsciente, entrega-se inteiramente ao seu poder, torna-se verdadeiramente um possesso. Por isso, precisamente no contexto do orgulho, os monges falam de confusão do espírito, ou mesmo de perda do espírito.

Os oito vícios e os demônios relacionados com eles ameaçam cada vez mais o homem. Enquanto os três impulsos básicos são relativamente fáceis de controlar, com os três estados de ânimo a luta é muito mais difícil. Do homem adulto espera-se que ele domine os três impulsos básicos de maneira a não prejudicarem sua personalidade como um todo. É claro que também existe aqui um mais e um menos. Como os instintos possuem uma função positiva, também não se trata de eliminá-los mas apenas de os ordenar e de os integrar. Mas quando passamos a ocupar-nos com os três estados de ânimo, trata-se de integrar as próprias sombras. Primeiramente torna-se necessário que admitamos as necessidades e os desejos, para que não tomem posse da alma como emoções negativas e escapem a todo e qualquer controle. Depois, precisamente na luta contra a tristeza e a falta de disposição, é do inconsciente que se trata, sobretudo, da integração da anima, da parte feminina da alma, que no sexo masculino, quando reprimida, se manifesta como mau humor. Esta luta, tanto segundo Jung como também segundo Evágrio, realiza-se na fase da meia-idade, e se demonstra como essencialmente mais difícil do que o domínio dos instintos. Na luta contra a vaidade e o orgulho trata-se da sinceridade para consigo mesmo e da relação com Deus. Na terminologia de Jung trata-se de saber se o Eu irá dar lugar ao Selbst, se o eu tentará assumir os conteúdos do inconsciente e com eles enriquecer-se, ou então se ele irá se abrir e se entregar ao numinoso que lhe vem ao encontro nos arquétipos do inconsciente, sobretudo no arquétipo de Deus. Do ponto de vista religioso trata-se de saber se eu quero usar Deus e os homens para mim mesmo, para minha própria glória, ou se quero servir a Deus e aos homens, se estou pronto a renunciar aos meus ideais e as minhas imagens de Deus para entregar-me ao Deus verdadeiro, para render-me ao Seu amor.

Necessidade e conteúdo do acompanhamento espiritual

“Vós sois o sal da terra. Ora, se o sal se tornar insosso, com que o salgaremos? Para nada mais serve, senão para ser lançado fora e pisado pelos homens.” (Mt 5, 13)

A motivação que deve fazer-nos desejar viver a graça do acompanhamento espiritual deve ser inspirada pela afirmação de Jesus: “Vós sois o sal da terra”.Trata-se de verificar que nunca percamos o sal e o sabor do nosso ser batismal, da nossa vocação, assim como da nossa identidade evangélica.

O sal previne a corrupção e dá sabor à comida. Ser sal da terra é lutar contra tudo o que degrada o homem, começando em si mesmo, irradiando suficientemente vida no Espírito para devolver o gosto pela vida, aos que o perderam.

Os tempos de acompanhamento espiritual são precisamente um “kairós providencial”, uma pausa vital para ler a ação de Deus em nossas vidas, por vezes complicadas. Hoje, mais do que em qualquer outra época, corremos o risco de não estar mais presentes a nós mesmos e, por isso, temos dificuldade em encontrar o sentido e a direção de nosso percurso de vida.

Por que a prática do acompanhamento espiritual é uma necessidade para o discípulo de Cristo? Porque ele procura, “com temor e tremor” (Fl 2, 12b), fazer a vontade de Deus em sua vida.

Diz-se que um dia, alguns irmãos foram à casa do Abba Antônio (trata-se de Sto. Antônio, um monge egípcio do século III) e disseram-lhe:

“Abba, diz-nos uma palavra: ‘Como ser salvo?’. O ancião disse-lhes: ‘Ouçam a Escritura. Far-vos-á muito bem’. E eles responderam: ‘Mas nós queremos ouvir isso de ti, Pai’.”  (Sto. Antônio, 9)

Assim como, na confissão, o sacerdote pronuncia sobre nós as palavras de perdão, em nome e na pessoa do próprio Cristo, assim também no acompanhamento precisamos ouvir “de um outro” o conselho do Senhor.

É claro que devemos evocar ao nosso acompanhador a realidade da nossa vida diária, porque a vida espiritual se desenrola nesta realidade. O espiritual é enxertado na realidade humana de nossa vida encarnada.

O acompanhamento espiritual ajuda a reconhecer o Espírito de Deus em ação na realidade de nossa história e de nossas relações humanas

Ele nos ajuda a aprofundar a nossa relação com Deus, a reconhecer Cristo, a fim de modelar a nossa vida baseada, na Sua relação com o Pai e com os homens. Ele nos convida a nos aceitarmos como somos, sob o olhar amoroso de Deus, sem hipocrisia, nem fuga ou rejeição.

Finalmente, o acompanhamento espiritual é necessário para ajustar nossa missão como Igreja, partilhando honestamente com nosso acompanhador nossos modos de viver as relações humanas, bem como nossas reações em certas situações e com determinadas personalidades.

O Cardeal Lopez Trujillo, Presidente do Pontifício Conselho para a Família, escreveu em 1999 (Ano do Pai):

“Há também um medo generalizado do exercício da responsabilidade paterna, do exercício da autoridade, da educação (…) Da mesma forma, o que se chama ‘síndrome de Peter Pan’ está se espalhando, o que evidencia o capricho daqueles que sempre querem permanecer crianças, sem amadurecer. Então o medo de educar torna-se uma espécie de conspiração: os pais que não sabem ser educadores, respondem inconscientemente a estes caprichos, com reflexos de autojustificação. 

Diferentes argumentos são apresentados: os pais dizem que não se sentem dispostos a violar a liberdade de seus filhos, a dirigir, a orientar e a corrigir. Eles acreditam erroneamente ou que os seus filhos já estão formados ou que sofrem de perturbações graves que constituem barreiras intransponíveis para dirigi-los. E não percebem que, ao não educá-los de forma responsável, estão colocando a educação de seus filhos em grande risco. Tornam-se pesonalidades que não amadurecem, que não crescem.”

Como preparar bem o seu acompanhamento espiritual:

a) Prepare seriamente o seu acompanhamento, através dos seus vários exames de consciência, anotando o que experimenta diariamente numa caderneta ou num caderno pessoal. Você pode assim anotar para apresentar ao seu acompanhador: os assuntos a serem discutidos que lhe trabalham internamente, as perguntas a serem feitas, as dificuldades encontradas…

b) Você deve ter a iniciativa de solicitar o próximo acompanhamento ao seu acompanhador. Isso não deve vir dele, porque ele precisa ver em você: a sua liberdade de escolha, a sua motivação e a sua decisão pessoal.

c) O momento do acompanhamento em si mesmo, começa sempre com a oração, para pôr as duas pessoas: acompanhador e acompanhado na presença do Senhor. Não se esqueça que é Deus o seu principal acompanhador. Confie-se em Suas mãos e sob Sua condução junto com seu acompanhador, para acolher o que o Senhor lhe disser (ou não) nesse momento.

Pessoalmente, tenho o hábito de rezar ao Espírito Santo para que Ele seja o Inspirador, o Condutor e o Conselheiro deste encontro.

d) Traga “material” para o acompanhamento, no que diz respeito à sua vida e à sua história.

São precisamente os pontos que você anotou anteriormente em seu caderno, sobre os quais você quer partilhar. A partir da sua vida cotidiana, e depois o que diz respeito à salvação de sua alma (e não pontos acessórios ou secundários). Não é necessário falar muito ou fornecer demasiada informação. Contudo, aquele que se apresenta nesse momento de acompanhamento, não deve chegar sem nenhum material para apresentar.

“O simples fato de anotar um pensamento para contar o meu pai espiritual, mesmo antes de eu ter terminado de escrevê-lo, me fazia sentir um benefício e alívio, tão grandes que era essa a minha segurança e tranquilidade.” (Um Padre do Oriente)

e) Não devemos esquecer a oportunidade de agradecer, na presença do acompanhador, pelas graças e bênçãos recebidas de Deus.

Com efeito, o acompanhamento não é apenas um pedido de ajuda, senão a pessoa tornar-se-ia facilmente ingrata, mesmo na prática dos exercícios espirituais!

“Quem é instruído na Palavra torne participante de toda a sorte de bens que aquele que o instruiu”. (Gl 6, 6)

S. João da Cruz aconselha neste sentido: “Tudo o que a alma receber, seja de que forma for, por meios sobrenaturais, deve dizer imediatamente ao seu mestre espiritual, de forma clara, sincera, plena e simplesmente”.

f) A espiritualidade monástica oriental enfatiza a “abertura do coração e dos pensamentos” ao seu acompanhador.

A manifestação de maus pensamentos (“logismoi”, do grego que significa “pensamentos tentadores”)  é importante poder ser depositada num acompanhamento, a fim de podermos então tomar as boas armas espirituais.

S. João Clímaco descreve cinco momentos no assalto e na tentação dos pensamentos: “Os padres dotados de discernimento diferenciam vários movimentos: a tentação, a discussão, o consentimento, o cativeiro e o que chamamos de paixão da alma” (S. João Clímaco, na Escada Santa).

g) Em seguida, anote o que sairá do acompanhamento naquele momento: as moções recebidas, as referências bíblicas e os conselhos de seu acompanhador. E mesmo uma ou outra das suas reações. Estas notas permitirão então que você reveja e siga o seu caminho espiritual em unidade. Eles o ajudarão a lembrar aquele momento inspirado, em que Deus veio falar ao seu coração.

O monge é um “filólogo”, que significa: um amante da Palavra. Assim se dizia de Antônio do Deserto: “Ele estava tão atento que não deixou cair nenhuma das palavras das Escrituras no chão, mas as reteve todas, a ponto de que a memória fosse como livros para ele” (Vida de Antônio 3:7).

h) Entrega na oração e na escuta profunda, com fé e submissão, o conteúdo que o Senhor acaba de lhe dar e que lhe permitiu viver, através do seu acompanhador.

i) Não é necessário que o bom acompanhamento se prolongue. A sua qualidade não depende da quantidade! Os jovens monges do deserto esperavam “uma palavra”, às vezes apenas uma palavra “humildade!” do seu Staretz (literalmente traduzido do russo como “ancião”).

Entre vinte a quarenta minutos é tempo mais do que suficiente para um bom acompanhamento. Na nossa opinião, não mais de uma hora! É melhor ser mais curto e mais regular na fidelidade. Um acompanhamento demasiado longo acaba por pesar (para ambos!) e pode desencorajar a fidelidade e o ritmo das próximas sessões.

j) A pessoa acompanhada pode (deve) reagir livremente ao conselho do seu acompanhador.  O acompanhamento que mais me lembro é aquele em que me tornei claramente impaciente com o meu Pai espiritual. Não estava de acordo com a forma como Deus me fazia esperar!

S. João Clímaco chega ao ponto de dizer que prefere as pessoas que estão borbulhando de paixões, mesmo que sejam mal orientadas, às que nunca têm pathos, isto é, que não demostram nenhum sentimento e que não são entusiasmadas com nada  (cf. na Escada Santa, 5, 28).

Para os apaixonados, com efeito, a conversão os levará a orientar e disciplinar suas paixões para o Senhor e para a caridade de seus irmãos e irmãs, com a mesma força com que amaram cometer o pecado. Enquanto que entre as almas indiferentes, não há muita matéria para reformar nem converter!

Para Clímaco, é casto “aquele que bane o amor (carnal) pelo amor (ágape)” e “extingue o fogo material pelo fogo imaterial”.

E Máximo, o Confessor, declara neste sentido: “A alma é perfeita quando o seu poder de paixão está completamente voltado para Deus”  (Máximo, Séculos de caridade, III, 98).

k) Confiar à Virgem Maria ou a quem o Senhor mostrou e pediu pelo seu acompanhamento.

Ela tem um papel importante como Conselheira de Alma e Intercessora. Ela continua esse tempo de acompanhamento convosco, intercedendo pelas vossas necessidades segundo a vontade do Senhor. Ela sabe discernir (como em Caná), por um lado, como vossas reproduções: “já não têm vinho” (cf. Jo 2, 3) e, por outro, a vontade de Deus.

l) Certifique-se de que o seu acompanhamento seja regular. Eles serão uma bênção, especialmente a longo prazo.

m) Você também pode escrever ao seu acompanhador, especialmente se ele ou ela estiver viajando ou morando longe de você. O acompanhamento espiritual por carta tornou possível possuirmos um arquivo muito interessante. Por exemplo, as muitas Cartas, entre S. Francisco de Sales e Sta. Joana de Chantal (no século XVII).

O pacto perpétuo que o nosso acompanhamento espiritual nos devia fazer assinar deveria ser este: “Nunca esquecer a oferta de sal da minha Aliança com Deus!”.

“Salgarás toda a oblação que ofereceres e não deixarás de pôr na tua oblação o sal da aliança de teu Deus; toda oferenda juntarás uma oferenda de sal a teu Deus.” (Lv 2, 13)

Em conclusão, observemos como o Papa Francisco recomenda o exercício tradicional do exame de consciência, um exercício que depois nos prepara para todas as nossas sessões de acompanhamento espiritual:

“Proteger o seu coração, à noite, antes de terminar o seu dia, ficar sozinho, permanecer em silêncio diante de si mesmo e diante de Deus e fazer-se a pergunta: o que aconteceu hoje no meu coração? Que coisas atravessaram o meu coração? Alguém que eu não conheça entrou? A chave está no seu lugar? Aquele que não examina regularmente a sua consciência não pode ‘vigiar nem guardar bem o seu coração’. O exame de consciência é uma graça porque guardar o coração é guardar o Espírito Santo.

Os demônios, que são muito espertos, voltam sempre… Para que não entrem, é necessário que saibamos nos recolher, a fim de nos defendermos de tanta maldade e não nos deixarmos enganar por eles.” (Papa Francisco, Homilia em Sta. Marta, 10 de outubro de 2014)

Papa Francisco

Monaquismo

Etimologicamente, monge é um homem que vive solitário (do grego monos, que significa único), mas esta palavra teve sempre uma acepção mais lata. Logo nos primórdios da cristandade, definiu aquele que se separou dos outros, aquele que se afastou da vida civil e social, para se dedicar completamente à oração e ao serviço de Deus, quer tenha vivido verdadeiramente isolado, como eremita e como anacoreta, ou em grupo, com outros, numa pequena comunidade, como cenobita.

Quando apareceram os primeiros monges? É difícil sabê-lo, exatamente. Hoje em dia, costuma-se considerar monge aquele que segue uma Regra antiga, mas seria erro defini-lo unicamente pela prática de costumes e por um certo modo de vida quotidiano. Além disso, as Regras só apareceram tardiamente.

Alguns, como por exemplo João Cassiano que, no século V, foi Superior de uma abadia em Marselha e visitou os mosteiros do Egito e de Jerusalém – consideram que o monaquismo já vem o tempo dos apóstolos. Segundo outra hipótese, teria nascido na época de Jesus: Essênios, Terapeutas, que teriam influenciado os primeiros cristãos ou que se teriam convertido no decorrer do século I. Esta hipótese não deixa de ter o seu fundamento, pois que essas comunidades se espalharam até à Tebaida e que foi nessa Região – fronteira entre a Ásia e a África – que a tradição diz que nasceu o monaquismo. No entanto, o monaquismo, tal como a cristandade o concebe só viria a ser historicamente atestado duzentos anos mais tarde.

Por isso, se nos é permitido pensar – nomeadamente graças à descoberta dos manuscritos de Qumrân – que a busca espiritual desses ascetas se parecia muito com o ideal dos primeiros eremitas cristãos – pois que também viviam em «comunidade», observavam o celibato, a pobreza, juntavam todos os seus bens em comum e passavam o tempo em oração e em contemplação -, ainda hoje não há nada que nos permita estabelecer, entre eles, uma filiação direta.

Os Padres do Deserto

A História quer que tenha sido no Egito, para além de Alexandria, que, nos princípios do século III, apareceram as primeiras formas de uma vida baseada nos ensinamentos de Cristo. Nessa época, já o Império Romano estava a entrar no seu declínio. E os cristãos, como já não eram martirizados, imiscuíam-se nos negócios públicos, gozavam dos mesmos direitos, tinham acesso às mesmas honrarias e às mesmas facilidades que os cidadãos das outras comunidades. O que até aquele momento os mantivera no fervor de Cristo – a revolta, a opressão e a fé – mostrava tendência para se moderar com o reconhecimento da Igreja. Por isso, foi muito naturalmente que alguns deles procuraram afastar-se das cidades, para se refugiarem no silêncio do deserto e voltarem a encontrar uma vida de pobreza e de perfeição, de acordo com os preceitos do Evangelho.

A esses homens que, vivendo como ascetas, se retiraram para os próprios lugares onde foi vivido o mistério de Cristo, deu-se o nome de «Padres do Deserto». A maior parte deles viviam isolados (por vezes com alguns discípulos) só voltando a encontrar-se com a comunidade no momento da liturgia. Realmente, conhecemos muito mal a vida deles, pois no seu desejo de percorrerem o caminho de Deus, eram de uma extrema humildade, viviam escondidos e não davam a conhecer as suas obras. Apesar disso, ainda chegaram até nós aquelas célebres «sentenças» ou «apotegmas» dos padres que, embora não nos permitam descrever exatamente a vida que levavam, nos trazem as suas palavras, alguns dos seus atos e, sobretudo, o espírito que os animava.

Os «apotegmas» são considerados como fazendo parte dos textos mais edificativos do mundo cristão: desembaraçados de dogmas e de dialética, apresentam – num estilo simples – homens inspirados pelo apelo divino, incessantemente submetidos à tentação e que se dedicam a viver o ideal de perfeição ensinado por Jesus. Esses «velhos», tal como também foram chamados, tinham por nomes: Teodoro de Sceté, Isaac le Thébain, Poemen, João Colobos, Arsénio, Macário o Egípcio, Gelase, Isidoro o Grande, Cassiano, Paulo de Tebas, para só citarmos os mais conhecidos. Entre eles também se encontrava Antônio de Common, que desempenhou um papel essencial e é considerado como chefe de fila, o «Pai» de todos os monges cristãos.

Um relato de Macário, o Egípcio

As «sentenças» dos padres insistem sempre na oração, no jejum, na submissão, no afastamento do mundo. O abade Arsênio – que desempenhara elevadas funções na corte de Constantinopla e se afastara, discretamente, para ir para o deserto do Cairo -, um dia, quando rezava, ouviu uma voz que lhe dizia: «Arsénio, foge, não diz nada, vive no recolhimento, são essas as raízes da impecabilidade». Muitíssimos outros apotegmas falam no mesmo sentido. Também fazem a apologia da temperança, da caridade, do esforço, da paciência, do discernimento espiritual e do sentido dos verdadeiros valores. Enfim, a luta contra os demônios, aqueles demônios do deserto que inspiraram a Idade Média, designadamente nas imagens que representam a tentação de Santo Antônio.

Mas Santo Antônio não foi o único a entrar em luta contra o demônio; e esse é um tema apreciado por todos os padres, como nos demonstra a narrativa de Macário, que damos a seguir. (Nascido por volta do ano 300, Macário começou por viver perto de uma aldeia onde, depois de adulto, o acusaram, injustamente, de adultério. No momento em que se preparavam para o castigar, ele fugiu para o deserto de Sceté. Tinha 30 anos. Ali se deixou ficar até ao fim da sua vida, em 390, depois de ter formado numerosos discípulos e de ter sido ordenado padre.)

Narrativa de Macário. Apotegma 456:

Quando o abade Macário vivia no grande deserto, vivia isolado no seu retiro, mas mais abaixo havia outro deserto onde viviam muitos irmãos. O velho vigiava o caminho e avistou Satanás que se aproximava sob a aparência de um homem, para passar por casa dele. Parecia estar coberto por uma túnica de linho, cheia de buracos, e em cada buraco estava metido um frasquinho. O grande velho disse–lhe: “Aonde vais?”. Ele respondeu-lhe: “Vou espevitar a memória dos irmãos”. O velho disse: “E para que são todos esses frasquinhos?”. E Satanás respondeu: “Levo poções aos irmãos”. O velho disse: «Isso tudo?” E o outro respondeu: “Sim, porque se alguma delas não agradar a um irmão, dou-lhe outra; e, se essa outra também não lhe agradar, apresento-lhe uma terceira; e de entre todas as que aqui trago, alguma haverá de lhe agradar”. Dito isto, foi-se embora. O velho continuou a vigiar os caminhos até que viu o outro voltar. Ao vê-lo passar, disse-lhe: “Que tenhas uma longa vida!”. O outro respondeu: “Como é que hei de ter uma longa vida?” O velho perguntou: “Por quê?” Ele respondeu: “Porque todos se mostraram desabridos para comigo e nenhum deles me recebeu”. O velho disse: “Então, não tens ali nenhum amigo?” E ele respondeu: “Sim, tenho ali um monge que é meu amigo e esse, pelo menos, obedece-me; mal me vê, põe-se a girar como um remoinho”. O velho perguntou-lhe: “Como se chama esse irmão?” Ele respondeu: “Theopemptos”. E, tendo acabado de dizer isto, foi-se embora. Então, o abade Macário levantou-se e foi ao deserto inferior. De longe, os irmãos viram-no aproximar-se, foram buscar folhas de palmeira e dirigiram-se ao encontro dele. Entretanto, cada um deles se ia preparando supondo que era para o seu retiro que o velho se dirigia. Mas este perguntou quem era, de entre os que se encontravam na montanha, aquele que se chamava Theopemptos; e, tendo-o encontrado, entrou na sua célula. Theopemptos acolheu-o com grande alegria. Logo que se viu a sós com ele, o velho disse-lhe: “Como tens passado, irmão?” Theopemptos respondeu: “Bem, graças às tuas orações”. O velho perguntou-lhe: “Os pensamentos não andam a lutar contra ti?” O outro respondeu: “Por enquanto, estou bem” , porque tinha vergonha de falar. O velho disse-lhe: “E eu, há tantos anos que pratico a ascese, que sou louvado por todos e agora, velho como estou, ando a ser perseguido pelo espírito da luxúria”. Theopemptos disse logo: “Olha, abade, eu também”. E o velho ainda disse que havia outros pensamentos que o perseguiam até que o outro também confessasse ter esses. Depois, disse-lhe: “Como é que jejuas?” Theopemptos respondeu: “Até à nona hora”. O velho disse-lhe: “Jejua até ao fim da tarde e exercita-te; recita, de cor, o Evangelho e as outras Escrituras; e se te vier um pensamento, nunca olhes para baixo, levanta sempre os olhos para cima que o Senhor virá socorrer-te imediatamente”. Tendo dado estas instruções ao irmão, o velho regressou ao seu deserto. E, como tivesse voltado a estar de vigia, tornou a ver aquele mesmo demônio e disse-lhe: “Aonde vais, desta vez?” O outro respondeu: “Reavivar a memória dos irmãos”. E foi-se embora. Quando voltou, o santo perguntou-lhe: “Como estão os irmãos?” Respondeu: “Mal”. O velho disse-lhe: “Por quê?”. E ele respondeu: “Todos eles se mostraram antipáticos para comigo e, o que é ainda pior, até o amigo que lá tinha e que me obedecia, não sei o que lhe fizeram, mas não só deixou de me obedecer como se tornou o mais antipático de todos. Por isso, prometi a mim mesmo não voltar a pôr os pés lá em baixo, pelo menos durante os próximos tempos”. Tendo falado assim, foi-se embora. E o santo foi para a sua cela.

Antônio, o «Pai» dos monges

Nascido por volta do ano 250, Antônio era de uma família de cristãos abastados que viviam ao sul de Mênfis, no Egito. Aos 18 anos – depois de os pais terem morrido – é atingido pela Graça, vende todos os seus bens, as suas terras, distribui tudo e abandona a sua cidade natal. Mas não vai imediatamente para o deserto. Pelo que conta o seu biógrafo – Santo Atanásio, patriarca da Alexandria – começa por se ir pôr sob a autoridade de um “velho”, para viver em comunidade e aprender a partilhar o seu tempo entre a oração, a leitura da Bíblia e o trabalho manual. Em seguida, retira-se num antigo túmulo escavado na rocha e acaba por se ir refugiar num castelo abandonado, onde permanece durante perto de vinte anos sem por isso se isolar completamente do mundo e da comunidade eclesial. Começa a receber discípulos, outros “padres”. Contudo, não cria nenhuma comunidade; cada um desses homens vive numa célula separada e reúne-se com os seus semelhantes para a oração e para a Eucaristia. No ano de 311, Antônio vai a Alexandria e, daí, segue para o Sul, acabando por estabelecer-se no monte Quelzoum, num pequenino oásis que nunca mais deixará, a não ser duas vezes: para combater contra os Arianos e para ir visitar os seus discípulos. Morreu em 356, com 105 anos, segundo conta a lenda.

Santo Antônio – que levou uma vida de solitário embora nunca se tenha afastado completamente do mundo, exerceu uma considerável influência no conjunto dos padres que viveram nessa época e nos sucessores destes. Uma influência direta através do exemplo, e indireta pelo espírito. Certamente que não foi o único ser excepcional daquele tempo, mas foi o mais célebre e simboliza a primeira corrente do monaquismo: o anacoretismo. Muitos foram os discípulos que a sua qualidade espiritual atraiu. Os apotegmas ali estão, para confirmar isso; vinham de muito longe, para o escutarem e pedirem conselho. Depois de o fazer, muitos deles se retiraram para o deserto e passaram a viver como eremitas solitários. Muitos outros se agruparam em redor de um velho (anacoreta), que se encarregou de os formar para a vida evangélica e de os reunir para o ofício do Domingo.

Essas duas formas do anacoretismo – o eremitismo absoluto (solidão total) e eremitismo temperado (praticado em conjunto, sob a direção de um “pai” espiritual) -, conheceu-as e experimentou-as Santo Antônio, com as suas armadilhas e os seus excessos, viveu-as com perfeição e sede de absoluto, nesse deserto do Nilo que virá a tornar-se o berço do monaquismo. Graças ao seu exemplo, o anacoretismo espalhou-se pelos desertos de Sceté, de Pispir, de Hemopolis, da Nítria, no Alto e no Baixo Egito e para além dessas regiões, na Palestina (Hilarion) até à Síria e à Mesopotâmia.

No entanto, foi um outro “Pai”, o abade Pacômio – contemporâneo de Santo Antônio, e que morreu em 346 – que inaugurou e estabeleceu as regras da vida em comum. Pacômio, o «Pai» dos cenobitas.

Do Egito ao Ocidente

Os discípulos começaram a ajuntar-se em redor dos santos velhos e, em certos lugares, chegaram a compartilhar uma vida mais coletiva. Em vez de viverem em células disseminadas pelo deserto, em volta de um ponto fulcral, reuniram-se no interior de uma muralha, tanto para melhor poderem lutar contra os demônios e reduzir os perigos da solidão como para pôr em comum e comercializar os frutos dos seus trabalhos manuais. Por conseguinte, tornou-se necessário organizar a vida da comunidade nesses embriões de mosteiros, instituir um regime comum de orações e de trabalho. Isso foi resolvido por Pacômio, que redigiu a primeira regra.

Se à primeira vista e devido ao seu pragmatismo, esta parece bastante grosseira, não se pode negar que contenha interessantes informações sobre a amplidão do movimento que se começava a manifestar. Pacômio também refere que muitos mosteiros tinham aceite a sua observância que já era seguida por cinco mil homens, segundo o que ele afirma. E até descreve a maneira como os tinha repartido pelos vários conventos da Tebaida. Também indica qual a natureza do trabalho dos monges, de que maneira deveria ser efetuado o serviço e quais eram as suas prerrogativas perante os estrangeiros. Seguiam-se prescrições sobre a alimentação, os jejuns, o sono, a oração, o silêncio e ordens muito precisas servindo para a edificação dos discípulos. Por fim, Pacômio instaurou a autoridade de um Superior.

Quanto ao espírito que dirigiu o seu empreendimento, as primeiras linhas da Regra elucidam-nos:

Em nome da Santa Trindade.

Regulamento que o anjo do Senhor recomenda ao Abade Pacômio.

Num país que se chama Tabennêse, no território da Tebaida, vivia um homem chamado Pacômio entre os que tinham uma vida pura; estava dotado com a ciência do futuro e favorecido com a vista dos anjos. Sentia-se cheio de amor pelos homens e os seus irmãos. Quando vivia numa caverna, o anjo do Senhor apareceu-lhe e disse-lhe: “No que se refere a ti, já fizeste o necessário; a partir de hoje, é inútil que permaneças numa gruta. Por conseguinte, sai, reúne os jovens e vive com eles; instrui-os segundo o regulamento que te vou dar”. E entregou-lhe uma tabuinha de bronze onde se encontravam escritas as seguintes palavras…

Segue-se a enumeração dos quinze primeiros preceitos:

E então o grande Pacômio respondeu ao anjo: “é pouca oração”.

O anjo disse-lhe: “Recomendei-te isso para que os jovens possam praticar este regulamento sem dificuldade, pois que os homens já feitos não precisam de regulamento; efetivamente, passaram a vida na contemplação do Senhor. Faço-te regulamentos para aqueles que estão privados de direção, a fim de que, como servidores, eles possam fazer o que lhes é ordenado e venham assistir aos ofícios de livre vontade e de rosto alegre…“

Depois de Pacômio, o monaquismo espalhou-se pelo Ocidente embora os monges egípcios não tivessem tido uma ideia deliberada de se propagarem e enxamearem. Isso deveu-se mais aos padres do Ocidente, tais como Cassiano, Rufino de Aquileia, Basílio de Cesareia ou Jerônimo que, atraídos por essa vida no deserto, viajaram até ao Oriente e, quando regressaram, começaram a difundir o exemplo egípcio. Aliás, ao princípio a igreja oficial mostrou-se bastante reticente, pois não tinha qualquer controle sobre os mosteiros e suspeitava-os de espalharem doutrinas duvidosas. Mas quando se apercebeu de que os mosteiros eram viveiros de padres, modificou a sua atitude.

Na Grécia, foi Basílio, bispo de Cesareia (que morreu em 379) quem desenvolveu e organizou a vida dos ascetas. Aliás, as Regras que escreveu continuam a ser observadas no mundo ortodoxo. Inspirando-se nesse exemplo, Santo Agostinho – tanto na Itália como no seu bispado de Hipona, em África – insistiu na fraternidade e redigiu uma Regra simples que acabou por obter um grande sucesso durante a Idade Média.

Na Gália, também foram os bispos-abades que, nos seus respectivos territórios, fizeram florescer inúmeras fundações monásticas. Entre outros, podemos citar Martinho de Tour, antigo eremita de Ligugé, em Marmoutier, Santo Honorato em Lérins, Cesário em Arles e Cassiano em Marselha, fundando São Vítor. Ao mesmo tempo, uma vasta corrente missionária e de evangelização começou a expandir-se, através da edificação de séries de mosteiros. Por exemplo, São Patrício, por volta do ano 420, converteu a Irlanda utilizando os mosteiros como representações da sua Igreja; mais tarde, a evangelização dos países germânicos também foi obra de monges.

Durante a Idade Média, a multiplicação dos mosteiros efetuou-se muito rápida e desordenadamente. Mas a verdade é que constituíram a força mais eficaz da conquista cristã, confirmando o seu papel econômico e social. A educação, a transmissão da cultura, a cópia dos textos e a circulação dos conhecimentos é, em grande parte, garantida pelos monges. Quando aos mosteiros, servem de pontos de muda para os viajantes, de hospícios para os deserdados, de centros religiosos e hospitalares ou então dão origem à construção de pontes e estradas. Enfim, desempenham um papel primordial no desenvolvimento econômico e agrícola, nomeadamente permitindo o empreendimento de importantes trabalhos de arroteamento e de saneamento de terrenos.

Mas em contrapartida houve uma grande confusão. Certos mosteiros foram construídos no centro das cidades, outros em vilas, ou em pleno campo ou em lugares afastados de tudo e de todos. Não existia unidade entre as várias fundações – nem do ponto de vista dos meios nem do da organização interna. Coexistiam todas as formas de vida monástica.

Algumas ordens, como a de Cluny, tornavam-se potências financeiras e políticas – o que lhes viria a ser nefasto -, enquanto que outras pregavam uma vida de eremita, a mais austera possível. Transformavam-se as Regras, que se iam adaptando às necessidades de cada um, e isso, num certo sentido, também era um sinal de vitalidade. De resto, nenhum destes fatos significa que tenha havido um relaxamento da fé, pois que esse período de expansão e de criação estava dominado pelo fervor e pela comunicação de um único espírito. Mas havia uma quantidade de observâncias e, do ponto de vista puramente estrutural, uma verdadeira falta de coesão.

Bento e Gregório, o Grande

Em 547, quando São Bento morreu, ninguém imaginava que a sua Regra iria reger, durante vários séculos, quase todos os mosteiros do Ocidente. Mas foi o que aconteceu. São Bento nascera em 480, na província italiana de Núrcia. Seguindo o exemplo de Pacômio, aos 20 anos retirou-se para uma gruta e, também como Pacômio, atraiu numerosos discípulos cuja vida teve de ser organizada. Começou por fundar um mosteiro, em Subiaco e, por volta de 529, fundou outro, em Monte-Cassino (Campânia), onde permaneceu até à sua morte.

Foi para a abadia de Monte-Cassino que, no fim da sua vida, Bento redigiu uma Regra, inspirada nas que naquela altura circulavam: as de Pacômio, de Agostinho, de Cassiano, e de um texto anônimo conhecido pelo nome de Regra do Mestre.

Nessa mesma época, outra Regra, escrita pelo monge irlandês Colomban, conhecia uma rápida difusão. Era mais severa e tomava menos em consideração a experiência quotidiana que a de Bento, mas Colomban e os seus discípulos viajavam por toda a Europa, a fim de a divulgarem. E, se, finalmente, a Regra de Bento passou a ser a «Carta do monaquismo», foi sobretudo graças à ação de São Gregório, o Grande.

Quando Bento morreu, apenas três mosteiros observavam as suas prescrições e, trinta anos mais tarde, em 580, o Monte-Cassino era destruído pelos Lombardos. Mas como antigo beneditino, Gregório – logo que foi eleito papa, em 590, encarregou-se da propagação da Regra e de fazer que a maioria dos monges a seguisse. A ambição deste papa era dupla: favorecer o monaquismo (que, nessa época, era o melhor instrumento para a expansão do cristianismo) e desenvolver uma legislação unificada sobre a qual poderia exercer um maior controle.

No fim do seu pontificado, em 640, já uma rede de mosteiros beneditinos cobria a Europa. Tratava-se de novas abadias – como, na Inglaterra, as de Jarrow, Malmes-burry ou Westminter – e de fundações antigas e reconvertidas -tais como Lérins e Marmoutier. Durante o século VII, os Carolíngios continuaram essa obra de unificação; sob a sua influência, a Regra de São Bento foi, pouco a pouco, suplantando todas as outras. A Regra Colombaniana – mesmo na Irlanda, onde melhor correspondia à austeridade do país – foi progressivamente atenuada e absorvida pela corrente beneditina. Carlos Magno confirmará essa lenta implantação, de tal modo que, no fim do seu reinado, só havia duas formas de vida religiosa: os monges que viviam na Regra de Bento e os cônegos regulares.

Extraído de:

MURRAY, Bruno. As Ordens Monásticas e Religiosas. 1989: Publicações Europa América, Portugal.

A Quaresma

Para quem é destinada a Quaresma? Para todos e qualquer um que sinta necessidade de conversão.

Para quem a Quaresma é desnecessária? Para todos que se orgulham de ser autossuficientes e que depositam sobre si mesmos o fundamento último de todas as regras.

A autossuficiência é amiga do individualismo e do relativismo, estes que, segundo a Igreja, representam sérios danos à vida cristã. Quando somos autossuficientes, rejeitamos qualquer ideia de dependência ou subordinação, inclusive a Deus. Quando somos individualistas, o filtro com que analisamos a vida e tomamos nossas decisões está focado em nosso ego e não no bem comum. E quando nos amparamos no relativismo, podemos nos sentir como deuses criadores de nossas próprias verdades, pois tudo é relativo e pode ser interpretado de uma maneira que nos favoreça.

Para aqueles que se orgulham da autossuficiência, que se fazem o centro do mundo e que relativizam qualquer regra à sua própria conveniência, ainda é cedo para pensar em conversão. Eles são aqueles a quem Jesus se refere ironicamente como “os que têm saúde”. Enquanto forem orgulhosos de ser independentes de tudo e de todos, de criar as regras do jogo e de se amparar no conceito de que nada é definitivo, Deus não lhes será necessário, a não ser que seja um deus que se dobre à forma como querem que o mundo seja. Por ora, não possuem dois requisitos importantes para a candidatura à conversão: estar em estado de carência e reconhecer-se no lugar da falta.

Quando Jesus fala que veio como médico para os que estão doentes, refere-se a tudo o que falta em nós que nos afasta do projeto original de santidade com que Deus concebeu o ser humano. Foge do projeto de Deus tudo em nós que afasta ou prejudica os outros: o preconceito, a usura, o egoísmo, a insensibilidade à dor alheia, a agressividade, a falta de urbanidade. Foge do projeto de Deus tudo em nós que prejudica a nós mesmos: a baixa autoestima, o medo, a melancolia. Somos doentes da alma enquanto não tivermos nos convertido ao que nos falta: respeito ao próximo, solidariedade, cuidado com o outro e gentileza. E nos manteremos doentes enquanto não tratarmos a nós mesmos com generosidade, paciência e auto perdão.

Conversão, que é o tema do Evangelho de hoje, significa a ação de alterar e/ou modificar um sentido, caminho e direção. Só muda de caminho quem reconhece que a rota atual precisa de ajustes. Quando não temos consciência da necessidade de mudar, somos como os fariseus: religiosos arrogantes e resistentes à corrigir o rumo.

Tracemos um outro caminho e reconheçamos que a conversão é para nós! Sejamos cristãos convertidos.

Thomas Merton – Um contemplativo multifacetado e ecumênico

Em torno de seus trinta anos, o monge trapista Thomas Merton debruçou-se sobre a máquina de escrever, olhou pela janela, mas não viu o exterior.

Seus olhos, como que vidrados, lançavam-se para tempos remotos de sua infância e, num esforço mais afetivo do que mental, tentou localizar os momentos em que Deus aparecera em sua vida.

Veio à lembrança uma remota recordação na forma de admoestação de seu avô materno: “não confie nos católicos”, disse ele. Surgiram outros obstáculos além desse: ainda criança, quis ir à igreja, mas não encontrou correspondência em seus pais.

Avançando o tempo em suas memórias, recordou de uma experiência marcante, aos 18 anos, quando fazia turismo por Roma.

Encantando-se com os mosaicos, vitrais e imagens de personagens e cenas cristãs, passou a perambular de igreja em igreja, maravilhado com a forma cativante com que a História da Salvação era contada em forma de arte. Entusiasmado, começou a ler os Evangelhos pela primeira vez, sentiu-se arrebatado espiritualmente e fez uma intensa experiência de oração.

Voltando, depois, à sua vida cotidiana, essa experiência foi ficando para trás e ele logo retomou a vida barulhenta, inquieta e superficial dos jovens de sua época.

Nessa fase, outros atrativos como bebida, festas e pequenas leviandades o afastaram de qualquer coisa relacionada à igreja. Foi um período de esterilidade espiritual.

Mas depois ocorreram fatos tão estranhos quão cotidianos: livros de temática religiosa chegaram às suas mãos, alguns professores abriram campo para sua inquietude por Deus e, sem que ele próprio compreendesse, desejou, do nada, batizar-se e comungar.

Outras experiências impressionantes, incluindo um desejo inexplicável de tornar-se padre, foram surgindo em seu caminho, até que um dia, aos 26 anos, entrou para a Ordem Monástica, e permaneceu religioso até seu último suspiro aos 54 anos incompletos.

O Evangelho como exemplo

No Evangelho da Parábola do do Semeador, Jesus tenta explicar aos seus discípulos, com a parábola do semeador, por que os resultados de sua pregação variavam tanto – gerando indiferença em alguns e impacto profundo em outros. Costumamos pensar em diferentes tipos de receptores de sua mensagem, mas podemos também pensar em fases diferentes de nossas próprias vidas. Merton, quando criança, poderia ter recebido a Palavra em seu coração, mas seu avô e seus pais, inadvertidamente, criaram barreiras, feito os passarinhos que vieram e levaram consigo a semente. Aos 18 anos, ele teve uma experiência religiosa genuína e importante, mas era ainda terra com pouca profundidade, e a semente morreu por falta de raízes. Mais adiante, os interesses do mundo eram muito fortes e, feito espinhos, sufocaram qualquer possibilidade de a semente divina brotar. Mas Cristo, o semeador, insistiu, e nos anos próximos à conversão de Merton, novas sementes vieram, encontrando um solo cada vez mais fértil.  Dessa vez, devidamente acolhidas, as sementes o mudaram para sempre.

Assim, também, nós. Sem que percebamos, temos recebido sementes em vários momentos da existência. Não tem importância que já desperdiçamos muitas delas e que, se fossem devidamente acolhidas, nossa vida, hoje, poderia ser diferente. Agora é a hora: não haverá empecilhos ou obstruções que desperdicem as sementes de hoje. É hora de, também nós, mudarmos para sempre. 

O Eremita Urbano: a vida monástica na cidade.

O monaquismo urbano funciona? O que é um eremita urbano? Como é por qual razão viver um estilo de vida monástico solitário dentro da cidade? Quem são essas pessoas?

Ao longo dos séculos, novas formas e expressões da vida monástica foram dadas, tanto na tradição cristã do Oriente como do Ocidente. E elas continuam a desenvolver-se hoje, na nova paisagem do mundo moderno, onde a vida do eremita, a do monge na solidão, não se limita ao meio rural, mas também encontra seu lugar na cidade. Os monges e monjas dos séculos XX e XXI serão eremitas e cenobitas, viverão em comunidades e em solidão, no campo e na cidade.

A vida monástica tem apenas uma regra: o evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo. O objetivo e o propósito da vida monástica é a união com Deus, a unificação da pessoa, a salvação humana, a iluminação e a sabedoria; numa palavra: a felicidade. Portanto, a vida monástica, em todo tempo e lugar é um esforço comprometido e consagrado de viver fielmente os preceitos de Cristo. A vocação monástica surge sempre e onde quer que seja, como uma resposta direta ao chamado da graça. O eremita urbano se acha imerso nos tesouros da tradição monástica, é uma expressão integral no aqui e agora dessa mesma tradição.

O carismático e audacioso Bede Griffiths, o beneditino que levou sua vocação monástica à Índia e depois retornou, escreveu em The Marriage of East and West, que:

Seja qual for o destino deste mundo atual, a necessidade real é encontrar um modo de vida que seja capaz de sobreviver a todos os seus desastres. Durante o Império Romano, foi a vida monástica que salvou o mundo […] os monges que fugiram para os desertos do Egito, Palestina e Mesopotâmia fundaram um estilo de vida baseado na oração e no trabalho sob condições da mais extrema pobreza e simplicidade; e completamente sozinhos, eles sobreviveram ao colapso do Império Romano […] seus ensinamentos e exemplos levaram à fundação de monastérios por toda a Europa, lugares onde a base da nova civilização seria encontrada. Hoje em dia (…) está havendo  um ressurgimento da vida monástica em todo o mundo […] que são centros de fermentação que poderiam gradualmente transformar a sociedade e tornar possível uma nova civilização.

O mundo de Bede Griffiths talvez pareça estar longe das metrópoles barulhentas como Nova York, Chicago, Washington, Paris, Barcelona ou Hong Kong. Contudo, as verdades eternas a que Bede se referiu são os imperativos evangélicos que suscitam a existência da vida monástica; trata-se de maneiras novas e antigas, tanto hoje como ontem. Isso que levou Bede Griffiths a viver a sua vida monástica em um mundo distante, num Ashram Hindu, é o mesmo ímpeto que proporcionou solitárias aventuras monásticas no coração da cidade.

Não há geografia, tempo ou espaço onde o monasticismo não possa prosperar e onde a vida contemplativa não possa crescer.

A oração, o trabalho, a pobreza e a  simplicidade são a base de um coração monástico. Seja sozinho, como um solitário ou eremita, ou estando no meio de uma comunidade, o caminho do monge e da monja é estarem imersos em Deus, concentrados no evangelho de Cristo que vive sua vida, respiração seu alento; é para ser mergulhado nos absolutos eternos sobre os quais não há dúvidas, nem geografia delimitada; nem barreiras de idade, tempo, lugar, cultura ou condição.

Em tempos passados, o deserto era uma cidade, de acordo com o DJ Chitty em seu clássico trabalho sobre monaquismo: The Desert a City. Hoje, talvez possamos dizer de outra maneira: a cidade é um deserto. Mas o que esse deserto, que é tão fundamental para a vida do monge, implica?

O deserto é a terra desolada e selvagem; a solidão árida e o profundo silêncio. O deserto é a reclusão onde o monge busca, em oração e penitência, o esvaziamento de si mesmo (kenosis), a livre renúncia dos desejos egoístas; é aí onde ele se esforça para o esvaziamento interior na expectativa do tempo de Deus (kairós), da manifestação da graça divina.

O eremita urbano é um tipo de monge entre os muitos que existem. E assim como monges em toda parte, está consagrado a Deus através de votos ou promessas sagradas, sejam públicas ou privadas, temporárias ou perpétuas. E são formuladas de maneira tradicional, com a pobreza, a castidade, a obediência e a estabilidade; ou podem ser expostos de maneiras criativas e inovadoras.

Mas o significado é o mesmo. O monge é um consagrado, oferecido, entregue ao serviço completo de Deus; inalterável em seu amor, cheio de uma extensa caridade que define seu coração como um amante do Senhor e compassivo com suas criaturas.

O amor sustenta o estilo de vida da vocação monástica. O monaquismo é uma vida de união e de unidade, de comunhão e de comunidade, de silêncio e de solidão, de profundidade e diversidade. O amor é o chamado; o amor, a vocação; o amor é o caminho, a via, o significado e a recompensa.

Deus, e não um inventor humano, é aquele que faz os monges. E ele os faz quando e onde quer que ele queira.

Quando toda a concentração do coração está fixa em Deus, a vocação monástica pode tecer um fio estranho. Talvez não seja mais o mesmo sonho que se tinha inicialmente ao embarcar-se na jornada monástica. Como a vida se desdobra, o mesmo acontece com o chamado de Deus. A consagração, a dedicação, a imersão em Cristo, isto é o que permanece; tudo o mais é circunstancial.

Portanto, à medida que a graça de Deus se desdobra na história humana de uma pessoa, a delicada sintonia de uma vocação monástica vai se ajustando ao indivíduo. Em outras palavras, quem somos e o que desde a mão de Deus e o ventre de nossa mãe, finalmente determina quem devemos ser e o que temos de ser. O mistério da santificação às vezes se vê condicionado pela transição, mas sempre e em todos os lugares repousa nas mãos de Deus.

Ser consagrado significa viver na presença de Deus, centrar-se nele, dedicar-se a ele, e pertencer-se a ele, não importa as condições de vida que, depois de tudo, são só o entorno, e não a essência da vocação monástica. Não é surpreendente, então (não deveria ser), que encontremos monges e monjas vivendo sozinhos na cidade, a anos de distância e a quilômetros de onde sua jornada monástica começou. Isso também faz parte do mistério da salvação.

A bela Regra de Vida, criada há quase vinte anos atrás pelo Pe. Pierre-Marie Delfieux para a Comunidade de Jerusalém, monges da cidade, diz:

[…] Você pode viver no coração de Deus estando no coração da cidade, pois este também é o seu lugar de residência. Seja um monge ou monja no coração da cidade de Deus “(N ° 128).

E isso é verdade tanto para os indivíduos como para as comunidades. Na ausência de um apoio financeiro que possa conceder a ilusão de segurança e confiança, ao mesmo tempo permitir uma separação completa do mundo, o eremita urbano tem que sair todos os dias para enfrentar a confusão e agitação da cidade apenas para viver E é exatamente assim que tem que ser.

Ser “um monge ou monja no coração da cidade de Deus” é trabalhar no meio da humanidade, sofrer os problemas e dificuldades do trabalho, a disciplina das tarefas que fazem parte do local de trabalho. Trabalhar no mundo real não é uma distração; é, antes, um chamado ao mais generoso e absoluto imperativo: focar no coração, voltar-se para dentro enquanto se permanece no trabalho do lado de fora. Não há dualidade nesse processo. É um ato de unificação, parte e parcela da experiência monástica: ora et labora (reze e trabalhe)

A tarefa de equilibrar a vida interior contemplativa com o trabalho externo, se se estiver no centro da cidade, requer uma perseverança particular. A princípio, parecerá impossível permanecer contemplativo na atmosfera agitada da cidade. Mas não, não é impossível. O coração clama a Deus: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador” e vai aprendendo, pouco a pouco, a orar com facilidade em meio à atividade barulhenta e do frenesi selvagem da cidade. Com o tempo, o monge no mundo entende que o centro mais profundo é a própria força impenetrável da alegria, da fé, do espírito e da vida.

Mais tarde, em sua regra, o padre Pierre-Marie diz:

O que os primeiros monges saíram para buscar ontem no deserto, você encontrará hoje na cidade. Toda a vida monástica é uma luta, e o monaquismo urbano chama os lutadores (de) […] Seguidores de Cristo: as bem-aventuranças os convidam para uma vida de verdadeira luta no coração da cidade (nº 129).

Não há proteção alguma, exceto Deus, para o eremita urbano que vive e repousa no mundo real, no meio de uma realidade tão dura e nua como sempre foi o coração do deserto. Como os Padres e Irmãs do Deserto, o eremita urbano conhece o isolamento e a ameaça da natureza selvagem, o rugido das feras e a tentação do coração. Encontrar a paz na cidade é andar com Deus no centro mais profundo do próprio ser.

O Monastic Typicon de New Skete (1980) diz o seguinte sobre o trabalho:

Ao longo da história, os nossos pais e irmãos na vida monástica têm ensinado que o trabalho não só é necessária para o sustento, mas é igualmente importante como um meio de autodisciplina e como uma ajuda para a oração, adoração e o pleno crescimento individual. O trabalho, portanto, é parte  e parcela integrante de nossa vida, especialmente porque é essencial à vida monástica em geral (números 71 e 72).

O eremita urbano, ligado ao trabalho para as mesmas necessidades que caracterizam todas as pessoas, terá sorte se puder obter seu sustento diário fazendo o trabalho em sua casa, dentro da poustinia; mas nem sempre isso acontece. Na verdade, raramente é possível. O monge que está no mundo deve aprender a se adaptar para trabalhar sob as condições próprias de uma determinada profissão ou em qualquer outro lugar, seja uma tarefa manual ou intelectual. O trabalho reúne o monge com pessoas de todo o tempo e lugar. “Comerás o pão com o suor da tua face” (Gn 3,19); com o tempo, o próprio trabalho será doce para o monge, porque é apenas outra expressão do canto interior do coração: “Senhor Jesus Cristo, filho de Deus, tem piedade de mim, pecador”.

Dizem que o hábito não faz o monge. Nem o trabalho. O que é essencial na espiritualidade monástica é que o trabalho e qualquer outra dimensão da vida sejam caracterizados por um espírito interno de recolhimento, pureza de intenção e total atenção. O trabalho é um processo de santificação, não uma distração. À medida que avançamos mais e mais nas profundezas da fé para realizar adequadamente a nossa própria tarefa, tanto o trabalho como o trabalhador ver-se-ão imersos e banhados pela luz da presença divina. Deste modo, o monge que está no mercado (de trabalho) se encontra como em casa no mundo de Deus.

Na contemplação em um Mundo de Ação, (Contemplation in a World of Action) Thomas Merton escreveu, décadas atrás, o que pode talvez ter sido o prelúdio para os monges no mundo de hoje: “Será que realmente escolhemos entre o mundo e Cristo, como se fossem duas realidades em conflito totalmente opostas? Ou escolhemos a Cristo escolhendo o mundo como é nele, ou seja, criado e redimido por ele? Será que realmente renunciamos a nós mesmos e ao mundo para encontrar Cristo, ou renunciamos a nosso “eu” alienado e falso para escolher nossa verdade mais profunda, escolhendo tanto o mundo quanto Cristo ao mesmo tempo? “

O eremita urbano, quer esteja imerso  na solidão ou no trabalho fora de sua ermida, procura integrar a vida contemplativa da Poustinia com o mercado de trabalho onde se ganha a vida. Renuncia o falso eu e a transcendência do espírito deste mundo, através da prática interior de recolhimento e da oração contemplativa, purifica o coração e transforma o melhor esforço numa harmonia pacífica que define a maneira correta de sustento.

O monge é chamado por Deus para viver sozinho nele:

Monos/monachos = um; sozinho; solitário.

Estando em comunidade ou em seu eremitério, o monge se esforça para ser alguém com um único ponto de concentração [focus]. Dentro do mercado de trabalho, o monge é um testemunho vivo da santidade do trabalho, da bondade do mundo e da salvação da terra pela misericórdia de Deus. Haja vista que a humildade deve caracterizar a vida de um monge, a simplicidade, a caridade, a bondade, a ternura e a compaixão exemplificam o desprendimento do coração que mantém livre o eremita e aquilo que lhe capacita para viver no mundo sem ser mundano.

O eremita urbano se esforça para renunciar ao que é mundano (centrar-se em si mesmo, ser egoísta, arrogante, oportunista e falso) para descartar essas atitudes mentais que impedem a sua comunhão com Deus e a harmonia com as criaturas deste frágil planeta. O coração puro do solitário de Deus aprende a retornar ao mundo quantas vezes for necessário; não como um aventureiro que busca prazeres ou o poder material, mas como crucificado em Cristo, transfigurado por Cristo, restabelecido à inocência e à santidade da vida. Gradualmente, a alma do monge – é o que se espera – torna-se transparente, límpida, vazia e transbordante com a alegria que só vem de Deus.

O “Monastic Typicon” (tipógrafo monástico) da New Skete afirma que:

Oração e adoração são as principais preocupações da vida monástica. Através das celebrações litúrgicas, os monges participam dos mistérios da vida e da morte de Cristo, abordando as realidades universais da ressurreição e transfiguração (n. 60).

O eremita urbano, em comunhão com os monges e monjas de todos os tempos e lugares, vive, desse modo, o mistério pascal do Senhor, ao entrar nas celebrações litúrgicas, quer na liturgia das horas, quer na Eucaristia.

O ofício divino estabelece as horas do dia, conduzindo a alma em espiral através da salmodia: elevando-a, baixando-a, voltando-a para Deus e devolvendo-a à terra. O eremita urbano, que trabalha no mercado de trabalho do mundo, não pode se dar ao luxo de cantar tercia, sexta ou nona durante o dia. Mas sua oração interior nunca deve cessar, o acompanha em todas as suas ações, nos trabalhos de interação social, em todos os momentos e lugares em que somos mais livres para entrar profundamente na oração da Igreja.

O eremita urbano tenta celebrar o máximo possível as várias horas do ofício divino do dia, pois a vida no mundo exige que o monge cuide de suas tarefas sem perder o centro de sua vocação. Estão aí prima, laudes, matinas, vésperas, completas. Pelo menos parte das horas regulares deve ser celebrada estando ele sozinho ou na sua paróquia. Em algumas ocasiões, o eremita urbano pode se juntar a alguma comunidade religiosa para a observância da oração litúrgica.

A sabedoria do deserto é agora a sabedoria da cidade, da cidade de Deus. Seria insensato alguém carregar-se demais tentando trabalhar de 35 a 40 horas por semana fora do eremitério enquanto espera completar a liturgia das horas. Deus não precisa do impossível. A regra da fé é simples: faça o que é possível; faça o que puder. E faça o melhor que puder, com todo o seu coração, com toda a sua alma, com todo o seu ser. Concentre-se no melhor da sua existência no que você dá a Deus, sem esquecer o que você dá às pessoas.

Qual é a diferença entre o monge mascate do  selvagem Egito, que de vez em quando saía para vender seus produtos no mercado, e o monge de  hoje que trabalha com um computador no centro de Manhattan e tem que ir para o Brooklyn ou Queens pelo metrô? O que importa é o espírito, o coração do monge, a substância interior. O que define a vocação monástica é a singularidade de sua concentração.

A oração que é íntima e que se desdobra a cada momento, a cada hora, consolida nossa união com Deus e impulsiona a conversão de nossos corações repetidas vezes, tornando sagradas não só nossas pobres e frágeis vidas, mas também tudo o que tocamos e todos nós amamos. O monge é fermento no mercado de trabalho e permanece assim para apreciar e usar proveitosamente o silêncio e a reclusão de seu eremitério, mesmo quando ele passou muitas horas fora dele.

A liturgia das horas é, do começo ao fim, a maior celebração do coração e do centro da vida monástica. É a alegria dos cristãos e a alma do monaquismo. Cantar o ofício divino é entrar de novo e de novo no eterno mistério de Cristo. Em cada tempo litúrgico, seus textos ensinam o coração, renovam o espírito e unem a humanidade a Deus na pessoa de Cristo, o único que ama a humanidade.

Em grande medida, o monge pode celebrar a liturgia das horas em uma igreja da abadia com a comunidade de irmãs e irmãos, ou na igreja paroquial em qualquer lugar da cidade ou do meio em que vive. Isso não importa. No centro da liturgia está o sentido pleno da vocação monástica: morrer e ressuscitar com Cristo segundo a vontade do Pai a respeito da redenção do mundo.

A Eucaristia é o alimento da vida monástica, é o seu sustento e a sua alegria. Encontrar um monge que não gosta da liturgia é encontrar um tipo de monge ruim. Portanto, se deve dispor de tempo e para participar apropriadamente da celebração da Eucaristia. Ela é o coração e o centro da vida monástica. Pacômio e os monges da cristandade oriental celebravam a eucaristia semanalmente, mas o privilégio e a prática do rito latino a celebram diariamente.

Os cantos litúrgicos que acompanham a Eucaristia fornecem sustento espiritual para a contemplação. O eremita urbano sai da igreja depois de participar na liturgia e retorna à cidade, volta ao lugar oculto de sua Poustinia trazendo a riqueza da Escritura que foi lida durante a Eucaristia. Se for um pequeno apartamento num complexo residencial ocupado (ou) num lugar vasto industrial ou profissional, o canto e o significado da Liturgia das Horas e da Eucaristia permanecem com o eremita durante todo o dia, todos os dias, alimentando seu coração e sua mente com aquilo que permanece: o sopro vivo da vida contemplativa.

Finalmente, o eremita urbano aprende a proteger a reclusão religiosa e a solidão, que proporcionam a profundidade do silêncio e da concentração, indispensáveis para a vida monástica. A integridade deste modo de vida e a constância pessoal do monge a esta vocação, surgem da fonte de silêncio e solidão que amadurecem na reclusão. No entanto, o monge da cidade nunca deve se tornar um eremita preocupado consigo mesmo, alguém cuja tendência ao isolamento surja do auto-engano, como se o mundo fosse algo contagioso que ele tem que evitar a todo custo. Uma solidão equilibrada surge de uma visão saudável da realidade. O oposto é um tanto defeituoso.

Viver no meio do mundo como um eremita urbano não é sacrificar ou minimizar a qualidade essencial da reclusão e da solidão necessárias para a vida contemplativa. Os eremitas urbanos geralmente não são reclusos. Voltar-se para o interior de si mesmo para a contemplação é uma disciplina do coração, não um ato de paredes e defesas. Os monges de todo o mundo têm que ir e vir enquanto apreciam e protegem o santuário interior da reclusão monástica, elemento essencial da vida do eremita. Eles fazem isso ao estabelecer e manter os limites apropriados.

A hospitalidade e as necessidades sociais fazem parte da realidade, essenciais para o equilíbrio psicológico e espiritual, nem mais nem menos. Elas, além disso, precisam ser harmonizadas, como tudo o mais, com a realidade da vocação do monge da cidade. Acima de tudo, o eremita urbano deve aprender a equilibrar sua reclusão e sua implicação secular, porque, estando sozinho, é urgente entender o que constitui uma reclusão monástica necessária no mundo e o que constitui o estar fora.

Os extremos podem ser melhor abandonados pelo estudo dos evangelhos de Jesus Cristo. O Senhor retirou-se para orar, descansou no deserto e depois voltou para a cidade. Da mesma forma, o monge no mercado de trabalho precisa se separar do mundo. Se os monges hoje têm que ser o sal do mundo, “o mosteiro” deve ser acessível a todos, de modo que eles, que estão no mundo e entram em contato com a vida monástica “possam saborear sua vida, sua adoração e sua mensagem “(Monastic Typicon of New Skete, No. 28).

O monge que deixa o santuário silencioso de sua ermida oculta para ir ao centro da cidade e caminhar entre os povos do mundo, o faz por necessidade e generosidade; ele faz isso para que o mundo saboreie e desfrute a vida consagrada, o que ela é e o que significa, convidando o mundo a participar da adoração e da mensagem da vocação monástica. Não devemos nos esconder da vida, mas abraçá-la, imergir todos os aspectos dela no mistério de Cristo à medida em que nossa existência entra na realidade da Páscoa; desde nosso batismo até o dia da nossa vocação. Assim, tudo é transfigurado pela graça de Deus e tudo participa da transfiguração de Cristo.

Para o eremita urbano, esta integração harmoniosa de todas as coisas é o centro da vocação monástica. É desse modo exato que sempre foi para a vida monástica ao longo de sua história. É o ponto fixo de um mundo que gira, o lugar onde Deus e a humanidade se encontram e onde a centelha da sabedoria brota para iluminar a terra.

Eu gosto de pensar que, se, de repente, Bede Grifftihs ou Thomas Merton, ou qualquer um dos grandes monges e monjas que são nossos antepassados espirituais participassem de um dia ou uma semana na vida de um recluso urbano, se sentiriam o suficiente confortáveis Eles reconheceriam o ritmo da oração, do silêncio, da solidão, do trabalho, da hospitalidade, do estudo, da lectio divina e da liturgia.

Aqueles grandes seguidores de Santo Antão, pai do monaquismo egípcio; ou de São Bento, que codificou a vida monástica; ou dos muitos que existiam entre eles, reconheceriam no eremita urbano, no monge do mundo, o mesmo desejo por Deus que os conduziu durante toda a jornada espiritual. Eles reconheceriam o caminho, porque é apenas um: abandonar tudo, abraçar tudo; embarcar em uma viagem do coração através da escuridão e de lugares desolados, remotos e selvagens, no deserto e na cidade; lugares onde a vocação monástica prospera e onde Deus encontra a humanidade num singular abraço de amor.

Referências

–  Chitty, D.J. 1961. The Desert a City. Oxford: Basil Blackwell.

– Griffiths, Bede, 1982. The Marriage of East and West. Springfield, Illinois: Templegate Publishers.

– Merton, Thomas, 1971. Contemplation in a World of Action. New York: Doubleday.

Ao alcance mas desacompanhado.

Eu passei minha vida desajeitada em busca de maravilhas,

de prodígios para desfrutar e que me surpreenderam.

O comum não cativava minha atenção,

todos os dias minha alma reivindicou o mistério.

Eu invejei aqueles que viveram quando Cristo pregava,

que viram seus portentos com apenas uma palavra.

Que evento o de um homem cego que de repente visse!

que um leproso se limpasse, que os surdos ouvissem!

Mas, quão idiota sou com esse desejo

com minha busca por um milagre para ver!

Eu deixei meus dias passarem sem nunca perceber

que o milagre foi que Deus estava me criando.

James F. Finley.

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Fonte: Mancuso Theresa, 1996. The Urban Hermit: Monastic Life in the City, Review for Religious, 55. 2, pp. 133-142.

  1. do trad. do inglês .: a autora é uma eremita urbana que mora no Brooklyn e trabalha no Departamento of Probation, na cidade de Nova York. Ela era professora, depois uma freira contemplativa e agora dedica-se a escrever extensivamente sobre a vida espiritual.